
uma fábula suja
que os ratos naturais
não se irritem e também riam
ÍNDICE
01 de dala a denise........................... 02
02 dai aos ratos o que é dos ratos 13
03 a elite da elite
esgoto de primeira........................17
04 a poesia ignora o esgoto.............23
05 lindo cofrinho
Jovem Rato Vencedor e Sadio...29
06 despedidas
a doce denise a cavalgar..............42
APÊNDICES
01 os olhinhos pedintes...................54
02 de dala para dentópolis
do céu para a terra.......................58
03 marx falou e disse.........................61
01 - de dala a denise
Tomei conhecimento, dessa mais uma vez brilhante performance dos ratos, algum tempo depois do aniversário de U., e daquele seu estranho encontro, nos noturnos céus de Belo Horizonte, encontro que Ilídio, eu e U. próprio já narramos no Dala.
Mas, por ora, menos poesia e metafísica, e portanto contentemo-nos com o esgoto próprio do Capetalismo, e de seus magníficos comandantes: ratos, ratões, ratazanas, ratapazes, rataparigas, magnoratos, ratúmanos, ratinhos fofinhos e por aí afora.
A minha estada, na estranha cidade comandada pelos ratos, surgiu dessa necessidade de me recuperar dos desgastantes combates que tive comigo mesmo, provocados pelas visões que U. narrara-nos, no dia seguinte ao seu aniversário.
No seu relato, Dala não era outra senão a própria Terra, o próprio planeta transfigurado numa mulher-deusa, e U. teria supostamente passado a noite de seu aniversário em companhia dela, Dala, em altas, noturnas e eróticas órbitas.
Como se pode supor, as poderosas palavras de U. haviam abalado fortemente não apenas a ele e Ilídio, mas também a mim, na minha condição de testemunha cá embaixo no planeta, ou de sentinela à janela de seu quarto, junto com Ilídio, na pensão da Rua Timbiras, enquanto ele tinha o seu transe sideral, e a sua transa cósmica; também eu ficara bastante atordoado pelo seu mágico, fascinante e terrível encontro.
Meio que transtornado, eu entendi que precisava me afastar daquele cenário transcendente, era preciso buscar uma tarefa mais humana, narrar algo que, aos olhos da própria Dala, me redimisse-me, me enriquecesse. Algo mais terreno, algo bastante próprio dos frutos humanos de Dala. Pois eu percebera claramente como U. e Ilídio caminhavam para um afastamento, cada vez maior, das tarefas terrenas, dadas não apenas pela Voz e pela Revolução, mas agora também pela própria Dala. Eu sentia que eles se perderiam, por um bom tempo, nos nevoeiros de suas próprias místicas, palavras, pozinhos e chazinhos de lírio.
E eu não tinha tempo para perder com as hipnóticas mas anestesiantes jornadas deles. Eu tinha jornadas mais árduas e terrenas, no mundo das palavras, mas palavras concretas, contundentes, denunciantes. Eu sentia que Dala esperava que fosse assim a minha escritura, após o encontro entre ela e U., pois se ela fosse esperar algo concreto e combativo dos outros dois...
*
Assim, procurei afastar-me daqueles movediços terrenos da poesia metafísica de U. e Ilídio, com seus clamores e espantos, enredada em redemoinhos existenciais e poéticos, cósmicos e filosóficos.
Saí de Belo Horizonte, embrenhei-me numa cidade do interior de São Paulo, e fiz-me morador daquela região por uns tempos.
A Voz afiançou-me que haveria ali farto material a ser garimpado, em se tratando de fatos e situações tipicamente humanas e moderníssimas, ou modernosas. Bastaria ter paciência. Afinal, São Paulo é a Locomotiva do Brasil, é o estado onde o arrojado capitalismo tupiniquim frutificou com mais força e competência, e se eu procurava vivências exatamente opostas àquelas narradas por U., com certeza ali haveria fortes possibilidades.
Na verdade, antes mesmo da manifestação tranquilizadora da Voz, a minha escolha, por aquela cidade em particular, Dentópolis, na região do Capetal, tinha sido sugerida por alguém constituído suficientemente de carne e osso (e álcool, claro), algo bem menos impalpável e fugidio do que a Voz. O convite viera de González, jornalista, filósofo e aventureiro espanhol, que, em suas jornadas pelo Brasil afora, morara e trabalhara durante alguns meses por aquelas bandas de São Paulo, um pouco antes de fixar domicílio definitivo em Viçosa, na Zona da Mata mineira.
E, como bom jornalista, ainda tinha lá alguns contatos que, volta e meia, lhe passavam algumas novidades e histórias. E uma dessas histórias dizia respeito a uma verdadeira batalha pela posse de uma Distribuidora de Bebidas, travada entre uma família de humanos e uma família de ratos, e que muito dera o que falar na região. Na verdade, González era bastante próximo da família dos humanos que perdera a Batalha para os Ratos, então sentiu-se na obrigação de ir até lá prestar sua solidariedade.
Além disso, González viajava a Dentópolis também com o propósito de começar a articular a construção do MPO - Movimento Parar o Ocidente, do qual falaremos mais, ao longo de nossa viagem de retorno a Viçosa. E, para tal construção, precisava encontrar-se pessoalmente com amigos antigos, tanto de Dentópolis, quanto de Campinas e São Paulo, tratar de questões que diziam respeito, principalmente, à ajuda financeira que poderia receber desses colaboradores; lembrando que o filósofo tinha amigos não apenas no meio cultural e acadêmico, mas também entre pequenos e médios empresários. E muitos desses empresários tinham se entusiamado com as idéias de González acerca de uma Parada Planetária para dar novos rumos à história.
Então González me pediu que lhe ajudasse a investigar e registrar a Batalha da Distribuidora, até mesmo para que esse registro servisse como arma de propaganda para as futuras mobilizações e convocações do Movimento; afinal, tratava-se de um acontecimento que poderia servir como símbolo, durante a Ocupação Planetária proposta pelo MPO, da luta dos humanos contra os ratos donos do mundo.
Assim, foram vários os motivos que me levaram até Dentópolis, tanto os de ordem pessoal e existencial, quanto os de ordem política; e, claro, a oportunidade de me divertir em companhia de González e Olavo, não apenas na assustadora Dentópolis, mas também em cidades aninhadas na Serra da Mantiqueira. Pois González já adiantara que não teria pressa na volta, queria passar por algumas cidades do Sul de Minas, aonde também tinha amigos - que, claro, também fariam parte da construção do Movimento.
Falei acima de Olavo. Como González não mais precisava trabalhar, com polpudas quantias depositadas em banco e investidas em bolsa, sempre se dispunha a pagar todas as nossas despesas; e, claro, na viagem até Dentópolis, para se encontrar comigo, levou a tiracolo o histriônico e carrancudo Olavo, escritor, pintor de paredes e Bacharel em Letras pela Universidade de Viçosa.
Sabe-se que é direito adquirido dos profissionais da construção civil – pedreiros, pintores, eletricistas, ajudantes etc. – abandonar a qualquer momento o compromisso assumido nalguma obra, e assim não foi problema para Olavo acompanhar o seu amigo espanhol, mesmo porque González sempre bancava nossas despesas, e Olavo trabalhava apenas o suficiente para comer, dormir, beber, vigiar a vida dos outros e escrever, isso quando não dava o cano nalgum ingênuo dono de obra que lhe adiantasse algum dinheiro – isso não é nenhuma caricatura de algum personagem, Olavo era realmente assim, acredite-se.
*
Na verdade, tomei conhecimento, desta mais uma vez brilhante performance dos ratos, já praticamente no desfecho dos acontecimentos. González e Olavo haviam chegado à cidade numa manhã de sábado, exatamente um dia depois do fim dos complicados combates dos humanos contra a elite dos ratos da cidade. E, segundo González, naquela tarde alguns desses humanos mais jovens comemorariam, não a vitória contra os ratos, mas sim a perda da Distribuidora.
Questionei-o sobre isso de se comemorar uma derrota. No que o espanhol não perdeu a oportunidade de exercer sua postura melancólico-filosófica, postura que aliás o livrava de qualquer chatice artificial-professoral:
– Não há que se estranhar o fato de se comemorar uma derrota, pois dependendo do que se perde, como se perde e para quem se perde, e dependendo das pessoas que perdem, a derrota não chega a ser insuportável, absoluta, a não ser pela constatação de que é e será sempre uma derrota de alguém para um outro alguém. Apesar disso, comemorar uma derrota é despejar todo um incalculável e orgulhoso desprezo para cima daquele que supostamente obteve a vitória.
Exatamente esse parecia ser o estado de espírito daqueles humanos, enquanto abasteciam-se de cervejas, caipirinhas e da discreta e etérea erva cannabis, na silente tarde de sábado, numa ampla varanda acimentada, aonde tinham colocado cadeiras, mesas e uma churrasqueira.
Confesso que lá fui com eles, tão somente em virtude de recolhimento interior, sem esperar muito de interessante. Pretendia apenas sentir os efeitos de uma boa maconha, aqueles eflúvios ora amigáveis, ora assustadores e misteriosos. Apenas tanger alguns recantos de minhas silenciosas florestas interiores, ou alguma trilha noturna e campal da memória, ou alguma trêmula saudade uterina.
Confesso que ainda estava envolto por aquela atmosfera cósmico-metafísica do relato de U., e senti necessidade de viajar um pouco em densas e pacatas paisagens interiores – afinal, não havia se passado nem três meses desde a noite d’Uaniversário.
De formas que lá me encontrava, a tentar me abandonar nas mesmas encostas enfumaçadas, que acolhiam aqueles intrépidos e irreverentes rapazes e moças; mas também confesso que não lograra ainda me postar a dois passos do paraíso. Eu sentia apenas, e isto de maneira bastante acentuada, um gosto picante de cinza acalorada em minha boca. Mas chega de confesso, confesso, etc etc etc.
Gonzalez confortou-me, dizendo que às vezes costumava ser assim mesmo. Às vezes o organismo do sujeito não se dava bem com determinado baseado. Quanto a Olavo, ele apenas me presenteou com uma de suas típicas e corrosivas risadas de deboche – ele era radicalmente contra maconha, e achava simplesmente patético que eu e González, muito de vez em quando, déssemos uns tapinhas.
Na verdade, talvez fosse também pelo fato de a conversa dos humanos ter começado a me atrair fortemente, ter me puxado, antes da hora, para uma incômoda lucidez.
De fato, eles improvisavam uma espécie de teatrinho cômico, mas ácido, implacável e raivoso, em meio aos efeitos da inocente fumaça e dos brancos pós oriundos dos distantes e distintos Andes. Entre gargalhadas, os humanos imitavam um ratapaz que adentrava o escritório de seu pai e, em tom de bebê choroso, implorava ao papai Tatão que tomasse uma certa Distribuidora de Bebidas dos humanos, e desse para ele; na debochada improvisação teatral, o humano que controlava os pratos de cocaína fazia o papel de Tatão, e a mocinha que aguardava a sua vez de cafungar imitava os gestos do jovem Tato.
*
Naquele ponto, eu já queria conhecer os detalhes dos acontecimentos. A performance ao mesmo tempo raivosa, debochada e desamparada dos jovens humanos me dizia que havia algo ali de comovente, ou de singular.
A festinha ainda prometia transcendentes e enfumaçadas estradas, mas agora percorrida ao lado de uma surpreendente e excitante companhia. Denise - garota amiga de Lígia, jovem mulher de Caio, um dos humanos da Distribuidora - por algumas vezes debruçara-se por detrás de mim, a pretexto pegar bebida ou comida na mesa, e me roçara seus jovens seios sem sutiã, sustentando um firme olhar quando eu me virava para ela, no rosto um sorriso de sedutora inocência, própria dos seus atrevidos dezesseis anos, nem um pouco dissimulada.
Tal avanço frontal e inesperado, vindo de uma garota quase na metade de minha idade (eu estava para fazer vinte e oito) perturbou-me. Comentei-o discretamente com González, que, ao contrário do que eu esperava, estimulou-me, incitando-me a aceitar e responder adequadamente aos ataques da jovem caçadora. Quando argumentei que aquilo era quase pedofilia, gargalhou e me lembrou que um dos pontos defendidos pelo MPO seria exatamente o de abolir o preconceito em relação à idade para homens e mulheres se relacionarem.
Por aí se vê como o Movimento já se tornara uma espécie de obsessão para González, como todas as suas referências passavam pela construção desse Movimento. González tinha pressa, afinal já passava dos setenta, e sentia que o momento de putrefação do Ocidente tornava não apenas propício, mas necessário e urgente, um movimento de Ocupação Planetária. Mas, sobre o Movimento, outro será o momento de detalhá-lo.
Por ora, aos eflúvios da maconha e aos fluidos da doce Denise. Ela era de minha altura, mas parecendo mais alta, por esbelta. Morena, cabelos não exatamente cacheados, mas, sei lá, misturados, agradavelmente emaranhados em mechas, mais para curtos, emoldurando um rosto nem oval nem redondo nem simétrico, mas mais afilado, que pareceria até mesmo agressivo, não fosse a doçura de seu olhar e de sua voz.
Na sua próxima aproximação, apropriei-me dela, segurei-lhe a mão, adiantei-me e eu mesmo lhe servi, um pouco sorridente um pouco na defensiva, a carne que ela intentava buscar. Ela me devolveu em dobro o sorriso. No que me levantei, oferecei-lhe a minha cadeira e fui buscar outra para a mim. A partir daí, o de sempre:
- Muito tempo que você e Lígia são amigas?
- Bem antes dela se casar com Caio.
- Desculpa, nem perguntei o seu nome...
- Denise. E o seu?
- Lázaro.
- Que massa, deve ser legal ficar sempre perto de você... – me olhou ainda mais firme do que das primeiras vezes, e explicou brincalhona: - Se você ressuscitou, quem tá perto de você tem a mesma chance.
Para além da brincadeira, a primeira parte da fala e o olhar dela deram a entender que já abríamos o caminho. Ou melhor, ela abrira. Cabia a mim continuar a trilha. Procurei passagens.
- E você, já tá pensando ou faculdade fazer?
- Nenhuma... – com um arzinho de desprezo, que me ganhou - Quero ser artesã...
- Artesanato, é? Então vai gostar da minha cidade, Ouro Preto... Na verdade, eu chamo apenas de Ouro... É o que mais tem por lá, artesãos... e artesãs, claro... – lancei a ver se marcava algum ponto.
- Meu Deus, você é de Ouro Preto?! Nossa, sou apaixonada por lá... Só estive lá uma vez, mas me identifiquei tanto...
- Minha casa e minha família estarão às ordens da senhorita Denise...
- Ai, que massa!
Ponto. Minha parte na trilha tinha sido feita. Mas não me senti realizado. O mérito tinha sido de minha cidade, não meu. Portanto, abri logo uma clareira na nossa trilha:
- Você é muito bonita, é diferente - um elogio ao feminino, com uma pitada de originalidade, sempre agrada a uma mulher inteligente.
E, no caso, ali não se tratava de mero elogio ou artifício de sedução. Denise era, e ela sabia que era, diferente, de personalidade forte; a simples firmeza, com que recusara a possibilidade uma faculdade, já dizia dessa sua força e singularidade. Portanto ela sabia que eu estava sendo honesto e, mais do que isso, sensível à sua personalidade. Então, tanto a trilha por onde iniciáramos a nossa caminhada, quando a clareira, aonde nos deitaríamos, já estavam abertas à espera.
Mas, naquela noite, a coisa não prosseguiu até aonde poderia. Na escurecida varanda dos fundos da casa, rolaram momentos de carícias apertadas, a latejante carne da jovem apertando-se à minha, sorridente, os túmidos e redondos seios acolhendo as massagens e passeios de minhas mãos ávidas; tudo evidentemente acompanhado de beijos, mordiscantes no pescoço e umidamente penetrantes na boca de hálito fresco e infancial. Mas não deu para continuar no escurinho da varanda, prosseguir juntos na nossa trilha, e então colher as íntimas flores que iriam brotar dos frágeis gemidos e da arfante respiração da doce Denise.
Pois González instava para irmos embora. Dizia que, já que eu me interessara tanto assim pela história da Batalha da Distribuidora, seria momento oportuno para encontrar um amigo de Olavo (ele era cheio de amigos ou conhecidos nas classes populares), empregado do grupo empresarial dos ratos, que certamente àquela hora ainda estaria num determinado bar da rodoviária, suficientemente aberto a confidências e revelações.
Assim, embora a contragosto, tratei logo de me retirar da festinha, bem mais cedo do que o previsto. Suspeito que também despeito houvesse, naquela pressa de Olavo para irmos ao encontro do cidadão. Afinal, nenhum aberto e agradável sorriso, como o da doce Denise, cair-lhe-ia nas mãos, ou melhor, não cairia de simpatias pelo seu semblante carrancudo e seus modos debochados.
De toda forma, fora oportuna a retirada. Se mais permanecesse, certamente a mistura da transcendência do baseado, com a tepidez do corpo de Denise, far-me-ia esquecer meu principal propósito que era o de conhecer a história da Batalha da Distribuidora
*
Fomos, então, para as ruas dos humanos.
À saída da casa, percebemos, estacionada mais à frente, uma viatura ameaçadora, com o assustador emblema da Guarda Municipal dos Ratos. Era impossível que já soubessem de nossas intenções. Ainda assim, esgueiramo-nos, tensos, na direção contrária. Gonzalez quis chamar um táxi, mas Olavo se recusou, não era tão longe a rodoviária, gostava de andar a pé pela cidade, fosse em Viçosa ou outra qualquer. Além disso, queria rever lugares e praças e becos e algum casario antigo, que toda cidade, mesmo fazendo parte da Locomotiva do Brasil, ainda conserva.
*
Parênteses, pare-se. Pois, aqui, há um ponto a esclarecer, ou uma pergunta a se fazer. Porque Olavo tinha tamanha familiaridade com a cidade?
Ocorre que fora lá que ele e González haviam se conhecido, quando Olavo lá também trabalhara. Passara uns tempos em Dentópolis, a pintar casa de um americano, um Professor Mestre Doutor Pós-Doutor em Linguística Geral e Semiótica Aplicada, que lecionara um ano na Universidade de Viçosa, e fizera amizade com Olavo, com quem gostava muito de conversar sobre literatura americana; depois fora lecionar na famosa Universidade de Dentópolis.
O Professor Mestre Doutor Pós-Doutor em Linguística Geral e Semiótica Aplicada achava deveras interessante um pintor de paredes ter se formado com louvor em Letras/Inglês, e considerava um desperdício intelectual que ele continuasse trabalhando como operário da construção civil. Tudo fizera para incentivar Olavo a construir uma carreira acadêmica, tal como ele. Mas o pintor de paredes queria apenas continuar pintor de paredes e tornar-se escritor.
– Se Faulkner foi pintor de paredes e escritor, porque eu também não posso, pô? – respondia debochado, quando ficava de saco cheio das insistências do Professor Mestre Doutor Pós-Doutor em Linguística Geral e Semiótica Aplicada.
Enfim, no final das contas, e para tudo resumir, Olavo acabou conhecendo González em algum boteco de Dentópolis, selaram forte amizade, ele acabou se cansando das conversas e do serviço na casa do Professor Mestre Doutor Pós-Doutor em Linguística Geral e Semiótica Aplicada, bateu saudade de Viçosa - já estava há mais de um mês em Dentópolis, era uma senhora casa para pintar, serviço demais; convidou Gonzalez para conhecer a sua cidade, onde então que (assim se expressa o povo popular) o espanhol acabou gostando muito de Viçosa e para lá se mudou, depois de anos e anos andando Brasil afora. E lá está até hoje, como bem o sabemos. Parênteses, prossiga-se,
*
Voltando ao cidadão em questão, amigo de Olavo: ele foi de fato bastante generoso em suas narrativas, insinuações e interpretações. Era um desses humanos revoltados com o poder dos ratos, assistente no setor de contabilidade central das empresas do grupo. Então estava bem a par das articulações em nível administrativo, ou seja, aquelas iniciativas que envolviam um forte e escancarado suborno dos ratos de Dentópolis aos gerentes ratúmanos da Fábrica de refrigerantes Maioral, a maior do mundo, sediada na não menos pujante cidade de Uaustrite, também na região do Capetal.
Esclareça-se: ratúmanos, como o próprio nome sugere, eram aqueles humanos que tinham como sonho dourado galgar os degraus que os levariam a, um dia, serem definitivamente aceitos como legítimos membros da raça dos ratos. Procuravam imitar os ratos em tudo: no maravilhoso e original cheiro, na transformação das mãos em garras, no crescimento de pelos pelo corpo, e por aí vai.
Mas eu não podia me deter em apenas detalhes administrativos, ou de cúpula, por mais reveladores que fossem. Queria algo mais vivo, queria saber como a batalha tinha se desenrolado no dia-a-dia. Claro que para isso eu teria como fonte confiável os próprios humanos, antigos proprietários da Distribuidora, já que me tornara próximo deles naquela mesma noite. E teria, claro, a doce-atrevida Denise, para me esclarecer alguma lacuna, caso os humanos houvessem por bem me esconder algum detalhe constrangedor para eles.
Mas mesmo essas fontes não me satisfaziam. Queria colher outros pontos de vista, antes de ouvir Denise e os humanos da Distribuidora. Queria introjetar em mim a visão dos moradores da cidade, a sua postura em meio e após a batalha, queria me sentir um verdadeiro espectador, antes de me deixar levar ou me influenciar pelas narrativas, pontos de vista e emoções dos principais envolvidos.
E, tratando-se de uma Distribuidora, nada melhor que colher informações junto ao comércio local e junto, claro, aos melancólicos baribebedores da cidade, iguais àquele cidadão amigo de Olavo.
02 - dai aos ratos o que é dos ratos
Atirei-me, então e enfim, à minha demorada e agradável peregrinação por aquelas ruas, estabelecimentos, favelas, praças e recantos, e até mesmo roças – fiz questão de visitar a fazenda onde nasceu o poderoso Tatão, próximo à Serra da Mantiqueira, num lugarejo chamado Araponga. E então relato o que colhi. Retomo exatamente daquela cena que os humanos tinham improvisado, lá na festinha de sábado.
*
– Mas, pai, pense bem! Uma Distribuidora dos produtos Maioral nas mãos de reles humanos, pai! – o ratapaz Tato fungava excitado, arrastando-se sobre o tampo da mesa de seu papai – grande, bela e convenientemente inundada de imundos papéis, que tratavam de grandes negociatas bancárias, fiscais, políticas etc etc.
Tatão pensava.
– É um dever, pai, que nós temos para com a nossa raça, e em especial para com o nosso grande grupo empresarial, claro – continuava o Tato, agora vasculhando numa das lixeiras do escritório.
Tatão, com as patas dianteiras sobre a mesa, pensava, articulava.
Reconhecia, com crescente satisfação, que o filho recuperava rapidamente o odor nauseabundo, o cheiro característico dos verdadeiros ratos. Também percebia, aliviado, que suas presas voltavam a se afiar, e o instinto a se inquietar. Por um certo tempo, ele e outros membros da família haviam temido pela sorte de Tato, parecera haver nele certas fraquezas típicas dos humanos, andara se envolvendo demasiadamente com rapazes e moças filhos de humanos.
Mas felizmente fora coisa de juventude.
Tato casara-se há pouco tempo, com aquela bela ratapariga, e passara a compreender o papel de sua espécie na terra. Porém, Tatão ainda se lembrava do recente fracasso do filho no comando da fazenda, com a qual o presenteara por ocasião do casamento.
E a Distribuidora que Tato exigia para si trabalhava com produtos de renome mundial, a Fábrica Maioral não admitiria falhas; o famoso slogan Maioral é maioral, Maioral é mundial refletia uma verdade verdadeira, não havia concorrentes à altura para os refrigerantes Maioral.
Por outro lado, se uma Distribuidora de tal porte estava nas mãos dos humanos, porque não estaria melhor nas mãos de Tato? A ideia não era má. E depois, que diabos, o filho merecia uma segunda chance. Além de recuperar gradualmente o seu cheiro de sujeira e rapinagem, o ratapaz tinha um poder de oratória promissor.
Realmente, eram interessantes aquelas suas ideias sobre a potência e a tradição dos produtos Maioral, relacionando-as com o seu lema “Dai aos ratos o que é dos ratos”. O seu lema era, no mínimo, adequado para os novos tempos da globalização, em que havia um reconhecimento cada vez maior, e mundial, da disciplina e do talento dos ratos.
E, depois, era preciso colocar um freio naqueles humanos, eles pareciam cada vez mais assanhados, principalmente depois que aquele perigosíssimo Gatão Barbudo, pilantra, cachaceiro e nordestino quase conquistara a Presidência do país; o sufoco não fora pouco. As ideias do filho, além de ajudarem a conter o assanhamento dos humanos e de seu líder pilantra, cachaceiro e nordestino, poderiam levar a família a posições nunca antes conquistadas no terreno da política. Ele, Tatão, não teria pensado melhor: Dai aos ratos o que é dos ratos; sim, senhor, belas, profundas e originais palavras.
Sim, talvez não fossem de todo uma fantasia as brincadeiras, durante os banquetes na Grande Toca, quando se dizia que o filho tinha notáveis semelhanças, fisionômicas e de postura, com o admirável Fernando Collor, que derrotara o Gatão Barbudo de Pernambuco nas últimas eleições. Ele, Tatão, não gostava de devanear, tinha sempre as patas e garras bem firmes no chão, e no queijo alheio, claro. Mas, quem sabe, talvez fosse a hora de liberar alguém da família para a política e talvez Tato não fosse apenas mais um entre tantos deputados ratos e humanos, nem apenas mais um mero governador... Não, não devia se entregar a fantasias, por ora; mas de toda forma articularia a tomada da Distribuidora para Tato.
– Tato - Tatão raspou a garganta - supondo que eu concorde em ajudá-lo, como começaríamos?
Tato permaneceu atrás do armário, mostrando apenas o focinho:
– Ora, pai, a matriz da Maioral fica em Uaustrite. E os nossos contatos lá? Ora!
Seguiram-se formulações baseadas em modernas táticas e estratégias empresariais. Depois do quê, brindaram com bom uísque, ambos se sentindo arrojados empreendedores, sensação essa tornada ainda mais agradável pelo fortíssimo cheiro de lixo que, emanando de seus corpos, espalhou-se pelo escritório no instante do brinde.
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