
mané e andreas
magia e sangria no Sagrado dia
marcelina, marcelina
menina que a tudo dá ânima

ÍNDICE
01 de cheiros e de visões, outubros 3
02 a bica dos sonhos 12
03 no bambuzal, o enlevo, o elo perdido. 17
04 lutas e marchas, os espantos de gonzaga. 21
05 a casinha da memória, o fugitivo do tempo. 29
06 mangas inaugurais, um ribeirão verdinho. 38
07 a queda do dia, pânico na capoeira. 41
08 a caçada, os chefes em capotes e cavalos. 51
09 os velhos em esperas, os moços em cismas. 63
10 palavras birrentas; luz, carro, ação! 75
11 marcelina, marcelina, menina que tudo anima. 81
12 a luta das memórias, o absorto alceu, tá bão. 91
13 a ponte da vida, o perdão: tá bão, tá muito bão. 103
14 esconde-esconde, penitências e romarias. 114
15 mangas passadas, arautos do tempo. 126
16 a cheirosa pele da infância. 131
17 cavaleiro vingativo e sentinela entristecida. 135
18 vultos e silêncios em volta deles. 139
19 os radicais sequestram marcelina. 141
20 as escadarias da traição. 144
21 as escadarias da redenção. 148
22 o capítulo maior 150
23 diogo e andreas ensinam, o Mistério pede. 155
24 o munho e o mundo, milho e luz. 161
NOTAS. 169
01 - de cheiros e de visões - outubros
Eram dois doidim, desses de dois e dois nunca dar quatro, mas, às vezes... quarto; e quarto de quase defunto, ou de doce menina defunta.
Pois a criança parecia que morria lá no hospital de Ervália, por isso se rezava nos aposentos ancestrais da casa grande. Pelo menos era o que se dizia, o que tinha passado a se insinuar - algum tempo depois de chegado o delegado – entre as pessoas ajuntadas-espalhadas pela varanda, na cozinha, nos terreiros, e até em porteiras mais próxima ao sobrado.
Lá fora, mas bem longe do agora abandonado pé de manga, em longes capoeiras, Mané e Andreas.
*
Era um fim de tarde de feições apaziguadas, coroando um dia nublado, porém sem chuvas e sem frio: dia inteirinho assim, desde manhãzinha: como um crepúsculo demorado e tranqüilo.
Talvez fosse por isso que os dois doidos tivessem andado, desde as primeiras horas, a perambular pelo jardim, pelos cercados e construções que circundavam a casa. Esses passeios não constituíam propriamente uma novidade para a família, os trabalhadores da fazenda e moradores das vizinhanças.
Mas, naquele dia, Mané e Andreas se mostravam mais irrequietos, simulando gestos rápidos e semblantes preocupados, representando à perfeição o papel de homens sérios, adultos preocupados, como se na fazenda existissem problemas urgentes e complicadíssimos, que só eles saberiam resolver.
Tudo acontecia nas terras de Alfredo Miranda, cabeça de numeroso clã e chefe político na Capivara, bem lá no meio dos mares de morros e montanhas da Zona da Mata de Minas.
*
Pois então: era sim-sim por causa do dia que os dois estavam naquela andação diferente até de todas as outras.
Esses repousantes dias sem chuva e sem sol eram uma espécie de feriado, de datas sagradas, nas quais Mané e Andreas resgatavam suas emoções e descobertas mais marcantes ao longo dos anos.
Era um desses dias, em que a ininterrupta ausência de sol parece fazer descer dos altos espaços uma quietude diferente, mais serena e com um quê de misteriosa; uma harmonia que abarca não só as pessoas e as grandes distâncias vistas das crinas dos pastos, como também parece se estender através do tempo: sob o manto de mansidão, as lembranças afloram ao mesmo tempo mais consistentes e mais recatadas.
E essas memórias não insinuavam somente um retorno ao passado, elas apontavam também para o futuro: lá à frente, por ocasião de um novo encontro com mais um dia assim, o capítulo de hoje seria relembrado, tal como os todos os dias ou capítulos anteriores estavam sendo revividos por eles naquele dia de Outubro.
Inefável fato, inevitável revivescência de suas impossíveis de esquecer saudades, vindas lá do imo deles, lá dos dias não amolados pela luminosidade solar: assim é que se explicava a azáfama dos dois mal afamados, naquele dia.
Seus cuidados em acudir as coisas: especiarias desconhecidas, esquisitices que davam espanto nas gentes. Mas espanto respeitoso, sem aflição e sem cara-amarrada nos outros camaradas. Se não empalhavam o serviço da fazenda, o diverso sem rumo daqueles dois até que divertia os do lado de cá da vida. Não amolavam... mas isso até acontecer a desgraça com a menina.
O tombo, machucado na menina, no chão do dia, inocente.
A queda no dia, a queda do dia, Andreas culpado? Os outros, e principalmente Mané e a menina Marcelina, perdoariam-no? E o divinal nublado dia, perdoá-lo-ia?
Aqui, explicação: o nome de batismo era André, mas após algumas de suas atribuladas andanças pelas cidades da região, principalmente lá no Viçosa, o sobrinho de Mané decidiu que o seu nome, agora, seria Andreas, certamente por influência de alguma leitura, e ponto final.
*
Mas, enquanto o desarranjo do dia não acontecia, eles cumpriam a obrigação que achavam ser a deles.
Pois então, contemos, cantemos a pedido da Voz, contentemo-nos com o muito que em mãos já temos.
Naquele dia, o Ser e o Sagrado tinham dado a eles o serviço de serem suas sentinelas e seus celebrantes declarados, quer dizer, com mais empenho, mais dedicação, sem medo e sem nenhuma vergonha dos outros. Pois ao cumprir essa obrigação, eles reencontravam e cumprimentavam o próprio ser deles – aqueles capítulos dos dias antigos, que tinham sido iguais àquele dia.
Então, a correria, que os outros tinham como estrepolia e que, depois do medonho machucado na menina, matutaram como macaquice de malucos, molecagem de malvados.
Eles corriam, cuidando dos todos lugares, pequenos ou grandes – no moinho, na bica d’água, o jardim, o fatídico pé de manga, o atrás do bambuzal, o coqueiro na boca da capoeira, a mina afastada, o alto cruzeiro – acorrentando eloquentes, com as flores e cores da imaginação, as emoções presentes e passadas e, ansiantes, cinzelando, polindo aquele último elo da longa corrente.
Dia ancião, que advinha lá dos tatatataravós do tempo, mas que também era embrião ainda enigmático, que, ao seu jeito e com a sua cara e com as suas estórias, daria a sua contribuição para o enleio e a recordação, lá no futuro de outros dias assim.
*
Fora Mané quem dera o primeiro sinal: o dia iria merecer deles uma vigilância maior do que a costumeira. No cruzeiro, no alto do pasto, para onde ele ia todas as manhãs, depois da ordenha, leite oloroso.
Antes atentemos em Andreas, lá embaixo, em impaciente espera no terreiro da sala:
- Home leitoso esse, hein cambada? – quase todas as manhãs esse era o seu primeiro trocadilho do dia, já quase no fim da ordenha.
A segunda fala era feita logo após o tio terminar de ajudar na ordenha, galgar o pasto e se agachar perto do cruzeiro:
- Ah, gente, cá entre nóis, ele sabe cheirar, mas é ôtras coisa bem diferente – dizia, numa voz meio cúmplice meio negligente, às pessoas que porventura ainda se encontrassem nas proximidades do curral.
Os outros ficavam curiosos, mas de uma curiosidade sem desassossego, há mumuito tinham desistido de entender o sentido dessas últimas palavras; contentavam-se em entender que a primeira frase do sobrinho era um jogo de palavras ao mesmo tempo irônico e respeitoso, com o fato do tio ser bastante jeitoso na ordenha do leite.
Mas as inofensivas e secretas segundas alusões significavam uma espécie de vingança, já que Mané jamais permitia que os dois subissem juntos o pasto; essa proibição não se dava através de palavras, apenas pelos duros olhares que o tio lançava ao sobrinho quando este, uma ou outra vez, insistia em acompanhá-lo.
Era conhecido de todos o contraste, entre a singular afinidade de Mané para com os cheiros e perfumes, e o contentamento admirado com que Andreas olhava as coisas e as pessoas; mas ele não ousava ridicularizar o tio, a ponto de segredar aos outros que as suas palavras se referiam a uma suposta incapacidade de Mané para cheirar as coisas da mesma maneira com que ele as via. Eles acreditavam que o segredo – nas suas diferenças de estar-n- mundo – era coisa somente conhecida deles próprios; assim, ambos acatavam, não atacavam em público as deficiências de cada um.
Andreas achava que o tio subia mas era para continuar sentindo o odor maternimal das vacas, e também para sentir mais de perto o cheiro matinal do capim que umidoçava as narinas de todos tão logo acordavam. Andreas achava que um tipo, tão pesadão e fechado como Mané, apesar de tamanho esforço e arrogância, não era capaz cheirar as grandes paisagens que se ofereciam lá de cima.
Então, para ele, Mané não demonstrava de maneira convincente que conseguia, através do nariz, um relacionamento especial com o mundo, um diálogo realmente original com as coisas, tal como ele, Andreas, construía através dos olhos, e que fazia questão de espalhar aos quatro ventos: ele via, com igual grandeza e fervor, não apenas as altas paisagens de que tanto gostava, mas também aquelas outras coisas, que Mané se gabava de cheirar com ardores, prazeres e reverências.
Enfim, a sua despeitada troça diária era por esse assim motivo: ele se achava superior ao tio, nas suas duas diferentes formas de viver-e-celebrar-o-mundo. E, ainda assim, tinha que respeitar e tolerar aquele astuto e estúpido sujeito:
- Ah, gente, cá entre nóis, ele sabe cheirar, mas é ôtras coisa bem diferente...
Mas daquela vez Mané se mantinha no morro mais que o costumeiro. Pior que isso, andava numa agitação à volta da árvore crucificada! Andação sem igual nas lembranças de Andreas, que, lá na cerca do terreiro da sala, guardava sua hora de caminhar até os caibros cristianizados na cara do céu, e de lá circum-navegar o olhar, conversar com as mais de mil colinas e montanhas que há milânios se conservavam consagradas e conglobadas na distância cisatlântica – Minas sem mar mas cheia de veios gerais a aguarem o oceano.
E, naquele dia, enfim Andreas deixou de esperar mais, foi embora, embora sem desespero. Resoluto, ele e seus passos no pasto:
- Luto, se for preciso! – exclamou voltando-se num sem-sorriso, para os outros que ficaram cá, a ver o gagá se afastar. Antevendo o luto sem risos que se instalaria entre ele e o tio astuto.
Assunto esse que Andreas, já em pleno pasto, também tratava consigo mesmo: desafiar a proibição. Adiava há muito o atrito. Não tanto por temor: por respeito, e não à idade ou ao parentesco, mas respeito por palavras antigas, que o tio lhe calara no peito há muito tempo, quando o sobrinho exigira que a proibição fosse explicada através de palavras e razões, e então Mané dissera:
- Rapaiz atrivido! Cabeça sem juízo! Quereno de todo jeito fazê as coisa sem preparo e sem respeito! O sole tá lá, tá lá, de madrugada: passarim vai sodá ele! E ocê, e ocê? – braço voando em todas as direções e palavras atropeladas, à maneira de quem não estava habituado a falar muito, o tio despejava suas razões.
Concordava em parte, Andreas: no tocante a ficar entocado em casa, até que todas as pessoas saíssem, ao invés de ir presenciar lá no alto o nascer do dia e da luz no mundo, logo ele que se gabava de ver tudo.
Mas suas razões tinha: necessidade de ver, sempre e primeiro, o nascer das pessoas para o dia e para suas vidas, tão diferentes das da dele e da do tio.
*
Acomodava-se num dos bancos da cozinha, desde as últimas penumbras em que o café era coado. Os que entravam e saíam: portava-se com eles como se fosse um conhecido vizinho em visita à casa. Indagava, opinava, elogiava, escutava: sobre as famílias, as plantações, a criação, as desavenças, os acordos, as novidades de longe e dos afastados da terra. E no seu papel de visitante a dar e receber notícias, fazia companhia ora a um ora a outro no seu desjejum; para não fazer desfeita à gente da casa:
- Coisa ispeciale é esta rosquinha de comadre Tereza... Hein, Alceu?
- É difícil, gente, tomá dum café forte, cheio, que nem ocês faz por essas banda aqui...
- Ainda vô trazê pr’essa minina uns biscuitim novo que tá com muita saída lá no Turvão.
- Ah, se tocá no natural gasta umas duas hora daqui até lá...
Essas eram, aliás, as ocasiões em que ele fazia questão de incorporar por inteiro o linguajar da roça, abandonando a pose e a fala que aprendera em suas atribuladas andanças pelas cidades. Ficava até o último rebuliço de meninos e adultos na cozinha. Depois se despedia das mulheres, alegando não poder se demorar mais, dizendo ir visitar parentes adoentados ou com outros transtornos em casa, ou partindo ou chegando de viagem demorada.
Às vezes enfezadas, às vezes alheadas, às vezes simulando pesar, elas desejavam-lhe boa jornada, embora soubessem: sua própria viagem não demoraria mais que minutos, até o curral - Mané.
Enfim, fascinava-o aquilo, a quilos: era um nascer tão diferente, estranho. Quanto à claridade despontando nas montanhas, ela lhe parecia natural, ancestral, ela como que nascia numa linguagem familiar a ele, não exigia que mudasse de fala, não exigia sua presença imediata, não se afastava dele. Assim, ao invés de voar até o alto como os entusiasmados pássaros da aurora, preferia acompanhar o modesto andar dos homens, cá embaixo.
Mas Mané não entenderia isso. O tapado do seu tio não sentia diferença: o cheiro das pessoas era para ele sempre o mesmo, o dia inteiro, ao passo que o das flores e capins, terras e bichos, era mais vivo e singular de manhãzinha.
De fato, Mané achava que Andreas tinha que fazer o mesmo com os olhares; tinha que estar lá nos altos, bem inhantes dele, a ver com as devidas reverências o brotar do dia. Não o injuriava porém por isso; apenas não admitia sua companhia no cruzeiro: ao tio soava falsa a cantoria do sobrinho acerca das montanhas brilhando de sol e brotando vento. E por lhe parecer falsa, ou afetada, a presença lhe perturbava, desviava-o da sua sutil e saborosa estrada de odores que irrompia com o dia.
*
Mas daquela vez o tio teria que se dobrar:
- A gente dá o nariz e eles querem o olho! - bradava aos bois, argumentando com algum mais acostumado: hoje cedia em meia hora, amanhã em uma, e depois de amanhã?
- Ele acha que tem algum cego aqui... Ou então tá querendo deixar alguém cego! - e com o chapéu alteado na mão, qual bandeira mágica, comandava a outros curiosos boivinos vindos em sua direção:
- A luta continua, velho! Avante, jovens rutilantes! – os ruminantes iam, riam?
- Ham? - fez ele, estacando, espantado de já estar tão perto do alto. Mais espanto: o tio parecia vir em sua direção; teria ouvido suas palavras de ordem, a pregar a desordem depois da ordenha?
Não, o corpo dele não vinha em sua direção. Mas chamava-o com o olhar e com andanças. Surpresa e alívio, Andreas percebeu que Mané necessitava aflito sua companhia. Havia algo diferente no ar, alto: arauto da mensagem, Mané o fitava com um silêncio espantado. Andreas sentou-se, a subida cansava. O alto, a visão:
- Alté que enfim, cumpanheirada! – palavras de agradecimento ao apoio dos companheiros boivinos na difícil marcha, e as mesmas palavras servindo de saudação aos cumes amigos, com ele falando e fixando-se na paisagem: olhando, orando, orvalhando o olho, arado alado a varar as altas avenidas verde-ventosas. Sentado, esquecido do outro, as pernas num V invertido, os braços cruzdescansados sobre os joelhos:
- Alté que enfim, cumpanheirada!
No alto, um vento cheio, lerápido, larápio bem-vindo que o roubava do cansaço e da terra, levando o poeta do campo para longe, navegante aéreo em visita aos vales variados e viçosos.
Mas, aos poucos, sem precisar palavras, percebia o porquê da perplexidade de Mané. Prestou atenção, mais: perscrutou, escutou, percorreu com um olhar mais calmo o dia: e o dia correu através dele, sussurrou-lhe sobre a passagem dos dias nublados em sua vida. Agora reparava: não havia ainda o sol, só sua claridade que intentava varar o varal das nuvens. E veio-lhe uma imediata e inexplicada intuição de que poderia ser assim até a tardinha. Acordou, acordaram-se: ele, o dia e o tio, úteis, abertos, prestativos.
Desceram. Despediram o gado, que mugiu: não haveria mais combate entre as duas criaturas andejas; uns boivinos ficaram tranquilizados, outros, decepcionados
Mas os bois ainda receberam, da criatura menos volumosa, um último e demorado olhar e sons cantantes, embaralhados, os quais acolheram, mugindo novamente, embora por pura cortesia; não lhes cabia saber do que falava a cantoria.
Porém, Mané, ao ouvir, soube que aquilo se chamava poesia. Dos versos Andreas se lembrara como num relâmpago, mas de forma fragmentada, recitando-os sem ordem e aos atropelos. Mas, para o tio, que verdadeiramente se admirava daquelas leituras do sobrinho, o entusiasmo dele foi um sinal audível - como um suave trovão - de que eles dois já deviam se abandonar, por completo, à jornada através dos recantos das coisas, dos lugares, das lembranças dos dias passados por eles iguais àquele.
Depois de esperar alguns instantes no vão do tempo, para ver se ele colocava ordem na sua poética declamatória aos bois – em vão, o próprio Andreas já se desesperava consigo mesmo – Mané reassumiu o comando da jornada:
- Vão minino! – e os boivinos bem os viram varar de volta o pasto, o viandante mais volumoso avantajando-se avante.
02 - a bica dos sonhos
Muito havia o que fazer. Rumaram direto para lá: a larga boca da bica de grosso bambu. Mané ordenou que fosse recrutar Vicente, um sobrinho que por perto estava naquele dia. O outro, sem instaurar perguntas, soube do que se tratava, alegrou-se: Vicente era um que, mesmo sem ser tido pelos outros como destrambelhado e sem sentido, às vezes era meio dado a meninices, e numa delas fizera um moinho todo de lata para Mané, colocando-o para girar sob a força das delicadas águas, daquele rego que formava uma cachoeirinha bem ao lado da bica.
Aqui, uns parênteses para explicar parentescos: Mané fora criado como agregado na família de Alfredo Miranda, junto com seus muitos filhos: Alceu, Bartolomeu, Djalma, Tereza, mãe de Vicente, e mais alguns outros. E acabara trazendo para a família o seu sobrinho Andreas, depois que o pai desse se enforcara em obscuras matas pelos lados de Araponga. Eram, portanto, tidos como filho e sobrinho de criação pelos Miranda, tal como Leontina, que, em mais adiantes, aqui aparecerá.
Embora Mané – aflito desânimo – não contasse muito que Vicente ainda se dispusesse a tais coisas, o primo veio. Muito à vontade, despreocupado de logo de manhã trocar o serviço da moenda – seu pai tinha um engenho de rapadura - pelo brinquedo. Ele e Andreas já de latas na mão: óleos de cozinha, marmeladas, massas de tomate e até de gostoso leite condensado.
Pediu facas e tesouras, arames e madeiras. Ágil, meio que ironizando sua descarada adesão ao passatempo, engenhou em pouco tempo o moinho. Firmando-as com arames, instalaram as partes soltas nas armações e suportes de madeira, fincados no leito argiloso.
- Uma beleza! De primeira orde! Sirviço muito bem feito! Uma beleza! – houve este instante, sim, assim que a obra ficou pronta, em que nem mesmo essas palavras foram proferidas, mas instante no qual os olhares e os silêncios dos três pareciam dizer exatamente isto: que contemplavam-na ela, que se completavam nela, a beleza surgida simples e inexplicável à frente deles, aquela beleza! Que o breve momento proibia até mesmo a fala, apenas permitia um ensaio das palavras que somente iriam dizer depois, e até mesmo o tagarela Andreas, que desde menino ansiava presenciar o espetáculo tantas vezes narrado pelo tio, reverenciou em silêncio, para somente depois exclamar em uníssono com os dois: - Uma beleza! De primeira orde! Sirviço caprichoso! Uma beleza!
Mesmo sem sol a miniatura reluzia na manhã: as pás de alumínio multicolorido pareciam cantarolar ao serem giradas pela água que descia do pequeno canal, também arquitetado com latas e madeiras. Tudo – águas, madeiras, latarias, brisas, gramíneas encharcadas – como que respirava, vivia junto aos corações dos sentinelas do dia, trazendo aos três admirados mensagens de um outro mundo, de uma outra região do Ser, uma região mais delicada, longínqua - região de grama e pasto verde-escondido, só situada e sitiada e encontrada no campo do tempo de cada um, de acordo com as fomes e o esforço de cada um.
Depois outros se aproximaram, meninos, mas também adultos. E, aproveitando a platéia, dessa vez o andarilho poeta das cidades conseguiu articular, no tal do alto e bom som, e em palavras tão cristalinas como as águas, que continuavam girar a engrenagem de lataria:
corre, sempre a esperar-te
a água da bica
para que você venha
e lave teu rosto criança
tomada a atitude
ela seguirá no fluxo normal
levando para onde
você não sabe
teus sonhos da noite
bem dormida, ainda
(a bica,
Vicente Gonçalves de Paula)
Ao ouvir e ver, uns riram risinhos e alguns riram a valer, outros vero ouro viram nos versos e no veio d’agua, e muitos as palavras ouviram, a engrenagem verificaram e sério ficaram somente, cismantes – a alguma semente de magia e de sacralidade a ali na manhã a brotar?
Vicente deixou-os; em companhia de Alceu, irmão de Mané, foi rever parentes e conhecidos. Acabou aceitando convite para almoçar. Em troca se dispôs a trocar o bambu da bica, que já apresentava rachaduras; maroto, ele na realidade apenas atendia a um pedido de Mané, que achava que, para maior capricho, o moinho reluzente e as águas moventes e a grama avizinhada e os ventinhos encantados mereciam a companhia de uma bica também vivaz, bambu fresco e verdinho, também recém-chegado de resinosas e misteriosas regiões da terra. Mas aquilo ficava para depois do almoço, Alceu queria-lhe mostrar um seu roçado novo no alto da capoeira.
Após algumas confabulações, Mané e Andreas se afastaram, deixando a obra aos cuidados e deleites de meninos e meninas.
O resto da manhã passaram-no numa espécie de reconhecimento do terreno, expectantes e meio confusos, sem saber exatamente como dar continuidade à jornada, para que as emoções do dia ficassem indelevelmente gravadas. E mais preocupados ficavam, por imaginarem que a indecisão e desorientação deles era seriamente reprovada pelos outros da fazenda.
Pois tinham como certo, depois do episódio da bica, no qual tinham atraído a atenção das crianças e de muitos adultos, que todos os que por ali moravam e circulavam estavam cientes e vigilantes, quanto às suas explorações pelas singulares estradas de Outubro.
E, assim, para se protegerem de um julgamento desfavorável, por parte da fantasiosa platéia, eles aproveitaram a deixa, quando da aprovação de Alceu no referente a trocar o cano da bica, e passaram a se comportar perante os demais como se apenas estivessem fazendo um sério trabalho de vistoria: verificando, discutindo, definindo onde eram necessários pequenos consertos e melhorias.
Mas apesar do disfarce – ou talvez ajudado por ele – Mané, que por mais experiente ainda retinha o comando, intuía de forma obscura: alguma coisa não estava no lugar, os cuidados deles começavam a parecer meio sem graça, chocos, sem substância.
Como última explicação para a incômoda impressão, deduziu que era tudo culpa do sobrinho, com sua afobação, sua mania de querer planejar os próximos passos, roubando das coisas o seu mistério e a sua força, fazendo tudo parecer uma obrigação vulgar, cotidiana, como um trabalho igual aos dos outros.
Admoestou então Andreas, no seu jeito ríspido e aflito de quem não conseguia ou não queria exprimir de maneira clara aquilo que lhe vinha à cabeça:
- Deixa pur minha conta! Deixa as coisa acontecê! Mas que agunia esse minino, Santo Deus! É uma cabeça de juízo bão e de coração bão, mas num tem prática, num tem...
Andreas, para não se sentir muito vexado perante os outros, com mais essa reprimenda do tio, saiu pela tangente, perorou, meio solene meio despreocupado, como se entre eles não houvesse uma discórdia particular, mas apenas uma concordância geral, quanto a questões de ordem filosófico-religiosa:
- Mas é o que não há, dúvidas, dívidas... Deus é Pai de nós todos!
Depois deste empate, prosseguiram sem mais embates, perambulando, sem uma rota definida, mas sem demonstrar preocupação, como se estivessem tentando convencer aos outros que haviam encontrado a espontaneidade necessária para a jornada através do dia, sagrado e consagrado.
De resto, antes do almoço, de importante mesmo para a estória do dia, o que aconteceu foi a visita ao coqueiro solitário, magro e hirsuto morador lá dos confins do mandiocal, já na fronteira com uma capoeira com cara de assombrada. Levaram os meninos, para juntos comerem coquinhos quebrados na pedra – a bica ficava no caminho do mandiocal.
Essa incursão foi de fato útil para resgatar o moral dos dois soldados da memória e do tempo: ambos tinham bem guardadas lembranças acerca de visitas feitas ao excêntrico morador, e à mesa relvada ofertada por ele, bem junto da cerca que dividia com a terra de Ladico Lourenço: aquela parca, porém apreciada, polpa de seus pequeninos e pétreos frutos.
O que, no final das contas, não foi suficiente para espantar as apreensões de Mané, com relação a estar agindo e sentindo corretamente: o velho, mesmo depois do corretivo no sobrinho, e mesmo com os pensamentos saltitando em companhia da meninada, ainda vivia um desconsolo na alma, uma teimosa intuição de que a estória dos dias se esvaziaria naquele capítulo, de que em algum lugar a corrente se quebraria, perderia substância. E, então, o que seria deles dali em diante, sem a presença do Sagrado e do Consagrado?
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