
O anjo Gabriel
Juvenal e Jandira
O dançarino
aqui, três estórias
tresandam ânsias e andanças
ÍNDICE
01 - o atoleiro, mensageiro do destino. 3
02 - enlevos: dourados túneis, altos pastos. 13
03 - espanto, desencanto, alto reencontro. 26
04 - fogosa menina, cretino galã. 34
05 - domingo à tarde, a incerta jornada. 42
06 - segunda-feira cinzenta. 65
07 - amante cigano e revolucionário. 69
08 - apêndice, 80
01 - o atoleiro, mensageiro do destino
O caminhão de bebidas atolara feio no barro.
Tinham pegado um atalho que margeava São Miguel, ao invés de passar por dentro da pequena cidade, rumo a Viçosa; antes não o houvessem feito. Mas pelo menos havia, mesmo que fraca, a claridade de alguns postes de luz.
Juvenal desistiu de insistir raivosa e ruidosamente com o acelerador. Também não ficou mais a dar marcha a ré, para depois ganhar impulso para frente, pois o espaço para tais manobras diminuía cada vez mais: a cada mínimo avanço, as rodas da frente afundavam mais um pouco, como se o peso sobre o solo fosse aumentado em razão da insistência do acelerador, parecendo então que o objetivo dos pneus era escavar ao invés de avançar, ou então avançar para dentro do solo.
Assim, os poucos centímetros, ruidosamente conquistados ao chão barrento, revelavam-se cada vez mais como um ganho inútil, como inútil era o trabalho dos pneus traseiros e do motor.
O caminhão ali ficou, bicho quieto na noite gotejante.
Como um animal que quisesse construir para si um ninho no meio da escuridão, da estrada e da chuva. Não se importando em expor a pele desamparada ao tamborilar úmido, noturno e ventoso. Na sua imobilidade e silêncio, o caminhão parecia irradiar repouso, rancor e expectativa, pronto para sabotar de maneira barulhenta e clamorosa qualquer tentativa de os homens colocarem-no novamente em movimento pela estrada.
Na verdade, não só a máquina, mas também os homens pareciam momentaneamente tomados pelo alívio de não ter que cumprir aquilo que se esperava deles. Não mais ter que resfolegar noite afora, na estrada tornada ainda mais árdua pela chuva, não mais ter que palmilhar atenta e perigosamente o leito escorregadio, feito de poças e lamaçais e curvas. Estrada ladeada por barrancos aparentemente adormecidos em seus silêncios.
Mas as capoeiras, córregos e várzeas, pouco a pouco encharcados e alimentados pela chuva, avisando que mantinham os olhos abertos e que, ao menor descuido dos veículos e dos passantes, teriam que recebê-los, arrebentando-os ou afogando-os, em suas entranhas inclinadas, acidentadas e apenas vislumbradas na escuridão e na cortina de água.
E, lá dentro, Juvenal e o ajudante Chico resignavam-se, ilhados, recolhidos na cabine.
- É, Chico doido, o bicho pegou... - deitando os braços sobre o volante (e o queixo sobre eles) Juvenal olhava, até aonde a luz dos faróis permitia, o espaço enfeitado pelas pequenas bailarinas d’água.
- Pegou uma ova! Parou, isso sim... - depois de olhar rapidamente para o companheiro, Chico deu uma de suas características risadinhas em falsete, bateu a ponta do cigarro e exclamou: - Ai, meu Deus, Juvenal foi atolado, gente!
- Vamo ver quem vai ficar atolado, na hora de ir lá raspar com a enxada ou com uma pá! Num vai ser o papai aqui não!
A insinuação de que teria que ir lá, para o meio do barro e do frio, evidente que ao negro não agradou:
- Hum, que conversa é essa? Tá me estranhano, rapaz? E onde já se viu arrumar enxada numa hora dessa, num lugar desse... Descansa, meu garoto, descansa...
Talvez trilhassem sem muito esforço o caminho do sono e do repouso, devido ao cansaço acumulado - principalmente dos ombros, que haviam suportado as centenas de caixas de cerveja e refrigerantes vendidas em São Miguel, Canaã e Araponga. Mas, ao invés de contribuir para um maior torpor do corpo e da vontade, aquele cansaço despertava neles a vontade de retornar logo a Viçosa, depois de dois cansativos dias de viagem; era como se os engradados, mesmo vazios, ainda lhes pesassem por detrás.
E existiam as casas e as luzes de São Miguel que, na sua distância e no seu mutismo, faziam imaginar um plácido e protegido repouso para os que estavam lá dentro, um repouso tornado mais poético e mais desejável, em contraste com o desamparo deles, em meio ao ininterrupto desfilar das águas.
*
E ali ficaram por quase uma hora inteira; nenhum outro carro passava, nenhuma fraterna aparição.
Era um vagar sonolento e desgastante para dentro de si mesmos, um palpitar silencioso e inútil para dentro de suas consciências, magoadas e maltratadas pelo mundo. E era também uma tentativa de refugiar-se nas pequenas felicidades, que cada um lograra trazer para si neste mundo, seus amores, suas ocasiões festivas, sua gente, suas histórias e suas expectativas com sua gente. E suas tentativas de manterem acesa uma inexplicada esperança nas transformações que os donos dos dinheiros e das forças do mundo prometiam, sempre prometiam.
Mas tudo isso, lembranças, esperanças, promessas de afetos e festas para com os seus, tudo isso ora crescia ora murchava dentro deles, como se o isolamento em que se achavam estivesse constantemente a acusá-los de tolos, de derrotados, de incapazes de proteger e festejar até mesmo as suas pessoas mais queridas nas festas de fim de ano. O que era refúgio transformava-se em sarcásticos sussurros de acusação. Era preciso esquecer até mesmo que eram vésperas de Natal.
Talvez por isso as palavras repetitivas de um e de outro. Ora Juvenal ora Chico, dentro daquela hora de espera, falava das peripécias da viagem, desse ou daquele freguês, e ora um ora outro lastimando a péssima ideia de terem feito as entregas em São Miguel em primeiro lugar - houvessem ido direto para Canaã e Araponga, teriam fugido da chuva e deixado São Miguel para outro dia, ou teriam feito a cidade pela metade.
Num dado momento Juvenal exclamou, como se houvessem decorrido apenas alguns minutos desde que haviam tocado no problema da enxada:
- Ali, ó! - apontava para uma casinha, que iluminara subitamente uma de suas janelas, a menos de cinquenta metros de distância - A enxada!
Emudecido, e endurecendo-se por antecipação, Chico seguiu a direção do seu olhar. Mas não opôs resistência, apenas uma condição:
- Sozinho eu num vou amolar ninguém uma hora dessas... Vamo nós dois lá...
Juvenal abriu a porta:
- Vamo pastar, porra! - e repetiu porra porra merda merda até sair em definitivo do aconchego da cabine.
E os dois homens puseram o pé no barro da estrada. Chico, negro esbelto, forte, impunha-se na claridade dos faróis. Juvenal, baixo e atarracado, os castanhos e encaracolados cabelos expostos à chuva, os beiços proeminentes a se destacarem num semblante melancólico.
Mas, apesar de compor uma figura mais apagada e desconjuntada que o ajudante, era ele quem caminhava de maneira mais decidida na estrada enlameada, e foi ele quem bateu firme na porta da casinha.
A jovem mulher que os atendeu, a princípio assustou-se com o vulto alto e negro, olhando-a impassível, requerente, como se fosse ela quem devesse falar alguma coisa. Pensou em recuar e fechar a porta. Mas, depois, pousou o olhar no outro homem, meio roliço e de menor estatura, que a fitava com um misto de tristeza e expectativa.
Não era um olhar tranquilo nem receoso, era apenas como o rosto de alguém que a mulher podia e devia acolher; acolher aquela espera discreta, e com um leve toque de desamparo, que havia no rosto do homem. Por alguns segundos ele e ela não conseguiram deixar de sondar o rosto um do outro. Enfim, ele falou:
- O meu caminhão encravou, a minha estrada parou aqui na sua porta, dona... - e as palavras de Juvenal para Jandira pareceram, para o astuto Chico, dizer algo a mais. Algo que o motorista e a mulher também vislumbraram, embora leve e cautelosamente.
*
(...) Jandira era mais alta do que Juvenal, usava um casaco de lã cinza-escuro, os cabelos meio claros desciam pouca coisa abaixo dos ombros. Juvenal, encostado à porta do caminhão, do lado do motorista, os braços cruzados sobre o peito, era atraído suave mas irresistivelmente para a sua pele clara que, em contraste com a noite, luzia no rosto, no pescoço, na parte das pernas que o vestido não cobria.
Mas o que realmente magnetizava o seu olhar, de incorrigível e expectante melancolia, era o bonito rosto de Jandira: mais cheio e avançado nas bochechas, na boca e no queixo, e depois recuando suavemente, formando uma redonda e graciosa cavidade na região dos olhos, delimitada ao alto e abaixo por porções de pele polar, que realmente faziam imaginar frescas e túmidas maçãs no rosto. Agora que a podia olhar melhor, ele pensava: “Parece uma japonesa ao contrário”.
Juvenal sabia que a mulher aceitara o seu jeito meio triste, meio bobo, e percebia que só dependia dele para que ela o admitisse como parte dela, de uma forma que nenhum dos dois ainda saberia dizer qual seria. Entendera quando Jandira sugerira que apenas Chico acompanhasse Gabriel até a venda, e não os dois, o que seria mais pertinente, não fosse uma já interferente atração por ele, presente na mulher – eles o pressentiam já ao olharem ou se tocarem acidentalmente nas idas e vindas sob a chuva e no barro da estrada.
E ele se entristecera. Por saber que algo de bom e de especial estava a vir para a sua vida, isso, junto com ansiosa alegria, trazia também uma enigmática melancolia. Dera dinheiro a Chico para comprar linguiça e pão. Foram para dentro, aguardar.
Depois, ela preparou a carne e comeram e beberam e falaram e fizeram curtos e longos silêncios e brincaram e relembraram algumas passagens acerca do barro e do caminhão e Jandira perdeu a cisma com Chico e Juvenal insinuou discretamente a Chico que já era de ficar sozinho com a mulher e Chico foi fumar lá no arremedo de varanda que havia não em frente e sim ao lado da casa e levou Gabriel consigo para fora.
*
- Gurinhamemo eu vô pra lá com ocê, Chico...
- Qualé, prego, se vai agorinha mesmo, então é agora, né não, prego? Vamo lá, eu vou te deixar sentar no volante.
Voz de fingida brabeza e apressado convite. Chico sabia que Juvenal contava com sua ajuda, para poder continuar mais tranquilo com Jandira lá dentro da casa, por isso insistia com o menino para irem para o caminhão; além disso, queria ficar logo na quentura da cabine.
Sabia que Juvenal se demoraria lá dentro. Chico fumava. Cansado, adormentava-se, embalava-se nos pingos esparsos e de ritmada lentidão que ainda caíam do telhado. Atormentava-se com a certeza da demora de Juvenal, tendo como certo que ainda não havia acontecido nada entre ele e Jandira. Ele tinha se sentado na lateral de uma charrete, que ficava guardada na varanda, enquanto o garoto tinha se aboletado lá em cima, no assento coberto por um manto de retalhos coloridos.
Para Chico, o motorista era tediosamente calmo durante a maior parte do tempo e, quando se tratava então de suas aproximações com alguma mulher, duplicava os rodeios e manobras. Por isso, sabia que qualquer pequeno obstáculo, como a relativa proximidade do menino, dificultaria as iniciativas de Juvenal.
“Ai gente, esse home só pode tá achando que a mulher vai pegar na marcha dele, e falar com ele pra acelerar em cima dela, ai meu Deus do céu, pra quê?! Pode um home desses?”
Dava vontade de mandar o menino Gabriel lá para dentro e acabar com o sossego dele, e então Jandira acabaria perdendo a paciência e despachando-o, bem assim:
‘Ô meu fio, cê bateu no endereço errado, a rua do Sossego é lá do outro lado de São Miguel, da próxima vez vê se garra seu caminhão e sua caixa de marcha por lá’ – e Chico ria de suas próprias piadas.
“E essa pestinha que não arreda pé daqui, as conversas dele, olha só: gurinhamemo, guriamemo, guri grudento, isso sim... O Juvenal guloso grudando na Jandira gostosa, Guri, Guri, lá em Viçosa tinha uma loja com esse nome, ai, minha cama, minha dama, ‘sem essa lama, sem essa lama, que arranha o carro’...”
Chico sentia o sono se impor cada vez mais, já tinha cabeceado umas três ou quatro vezes, sob os olhares atentos do menino; ainda por cima com aquela musiquinha gostosa de Caetano, que vinha lá do rádio de Jandira, parecendo ainda mais suave pelo isolamento do lugar e da hora, e por chegar amortecida através das paredes da pequena sala.
E, enfim, o menino Gabriel se deu por vencido, na sua fala meio matuta e meio desligada, falou que queria ir para a cabine, instado tanto pela redonda e poderosa visão do volante à sua frente, quanto pelos grunhidos daquele negro alto e meio esquisito, que de vez em quando falava sozinho e olhava para ele, com jeito de gente doida, como se quisesse lhe fazer medo:
*
(...) De fato, aboletado num tamborete na modesta salinha de Jandira, e também aboletado na sua habitual, tranquila e modesta melancolia, mas com o espírito já borboleteando pelo efeito da cachaça e das cervejas, Juvenal fazia manobras ainda um pouco pesadas para chegar até a estrada alva e convidativa, que se espraiava da presença de Jandira.
"Êta colo bonito, branquinho, com os peitinho dando pra ver que são cheio e firme".
Ao voltar para a casa, depois de desatolar o caminhão, olhando para as costas da mulher que caminhava com segurança na estrada barrenta, tentando adivinhar sua pele e sua carne através do vestido e da comprida blusa, ele estranhamente pressentira que seria conduzido por ela por longos e longos tempos estradas. e não apenas naquela noite e naquela enlameada estrada.
E aquela certeza de que, independente dos gestos e palavras deles, desembarcariam numa estrada perfumosa, ou promissora, firmou-se ainda mais no momento em que ela o olhou firme e quase transparente, em frente à porta da casinha, balançando o corpo, alteando suavemente uma perna, depois outra, para tirar os sapatos sujos de barro. Como se abrindo a porta de sua vida para ele.
Mas, sozinhos, lá dentro da casa e da noite deles, outras trilhas surgiram repentinamente, a desviá-los do caminho e da cama que ele supunha inevitável. Jandira passou a se mostrar mais reservada, o que Juvenal entendera como correto, até mesmo porque Chico e o menino chegariam a qualquer momento da vendinha.
Porém, mesmo após o lanche e a saída deles, a mulher não retomara a estimulante desenvoltura de antes. Quer dizer, ela não abandonara os seus risinhos recorrentes e despreocupados, nem suas palavras cheias e cantantes; mas a sua presença se cercava agora de barreira sutil, inexplicável, no entanto suficiente para que Juvenal começasse a procurar uma falha no seu próprio comportamento de homem.
Mas não era lá, distante, que Jandira o queria; não lá, assim, a salvo, nalgum ponto de seu silencioso e solitário caminho. Ela não pretendera expulsá-lo para lá, e nem aceitava que ele ficasse a esperar, aboletado numa ladeira de silêncio íngreme e obstinado. Ela queria arrancá-lo daí e transportá-lo para sua própria estrada - seus campos, suas tardes, suas esperas, e suas andanças dentro de suas esperas.
02 - enlevos: dourados túneis, altos pastos
Ela falava, ainda delicada. Ela trazia, saudosa. Ela andava, entorpecida, para lá e para cá. Ela dizia das coisas do mundo, boas ou más, que haviam sido doadas ou impostas à vida dela e dos seus familiares.
Juvenal, mesmo recolhido em sua melancolia, cismava se não deveria aproveitar um daqueles momentos em que ela passava bem pertinho dele, ele até mesmo sentindo o seu hálito quente-perfumoso de fêmea. Cismava se não era isso mesmo que ela queria, ou até mesmo provocava.
E matutava se tudo aquilo, que ele de súbito passara a recear, não eram apenas minhocas na sua cabeça, os velhos e tristonhos fantasminhas que sempre lhe envolviam em tantas situações pela vida afora, principalmente em estórias com mulheres, em festas, em churrascos, em botecos.
Quando, nas paredes de um desses aposentos antigos, há um pequeno buraco ou uma fresta e, quando através dessa pequena abertura, o sol consegue passar para dentro, os seus raios fixam em pleno ar penumbroso uma espécie de túnel quente e luminoso, circular e sem paredes, por onde parecem escoar grãos de matéria, despreocupados e sem destino, pequeninas coisas e entes vivos - silentes, luminosos e dourados bailarinos.
Assim pareceu a Juvenal quando ela falava e andava. As trilhas serpenteantes e irrequietas de seus lábios, à beira da caverna ávida de sua boca, traziam para a noite poeiras douradas de um tempo antigo, a saudosa delicadeza desse túnel de sons e coisas inflando-se, circulando entre eles desde longe, entorpecendo Juvenal, entorpecendo ela própria, entorpecendo o resto de chuva já cansada, distante de sua fúria triste e úmida.
Foi através daquele entorpecimento da alma, provocado pelos dourados túneis da voz de Jandira, que o melancólico motorista parou de cismar com seus próprios erros, ou com uma suposta falha de seu jeito de homem, que talvez não estivesse agradando à bela mulher à sua frente. Tranquilizou-se ao perceber que era aquilo, aquela paciência para ouvir e estar presente com a sua melancolia, que Jandira esperava dele.
Começou a ter certeza de que ali se gerava alguma coisa talvez especial, diferente, a acreditar que aquele não seria apenas um casinho de beira de estrada.
Mas se era para ser assim, se teria que ser um caso mais sério na sua vida, ou talvez o caso mais sério de sua vida, então que assim fosse, mas que fosse logo. Mesmo porque, a excitação pelo corpo e pela presença da curiosa e dançante Jandira já fazia doer o seu membro, tanta era a ânsia pela promessa tantas vezes adiada naqueles minutos. E, se bestasse, dali a pouco o cansado e despeitado do Chico era bem capaz de acabar com a festa, com a desculpa de que o menino de Jandira estava com sono.
E, aproveitando um momento em que ela ficara bem próxima, enchendo os copos com cerveja, Juvenal, num ímpeto desconhecido até mesmo para ele, mesmo sem se levantar da cadeira, abraçou-a de frente, segurando-lhe um dos braços; fitou-a de baixo para cima, e vendo-lhe no rosto um sorriso condescendente, embora ainda meio reservado, colou o seu rosto à altura do ventre dela.
E naqueles breves instantes, em que deixou a fronte repousar na pele quente e palpitosa, pela primeira vez na vida provou do que poderia ser um querer bom, profundo e constante, e soube então que estava pronto para deixar a mulher ocupar definitivamente a estrada de sua vida, ou pelo tempo que ela achasse conveniente - e essa incerteza, ou mistura de possibilidades, deixou-o ao mesmo tempo alegre e confuso, aliviado e levemente magoado.
Depois ele se levantou, ao mesmo tempo em que a fazia girar o corpo, de forma que pudesse abraçá-la pelas costas. Encostando o corpo contra a borda da humilde mesa, ele tinha Jandira firmemente enlaçada, seu teso mas agora pacificado sexo aninhando-se no calor de sua bunda tenra, elástica. Assim permaneceram por algum tempo, às vezes quietos, às vezes embalando-se levemente; ele respirando a brancura e o cheiro de leite de rosas da pele dela, próximo ao ombro e à nuca, parecendo flutuar naquela voz que lembrava os delicados túneis de poeira dourada.
Pois ela ainda insistia em lhe contar um pouco de sua história, aparentemente esquecida dele e de seu sexo, mas mantendo sua mão direita firme sobre a dele, um pouco para retribuir o enlace e as carícias, um pouco para refrear-lhe o deslizar das mãos, que se tornavam cada vez mais inquietas e famintas, rumo ao seu sexo.
Por fim, foram para a cama dela, de solteiro, no quarto simples, mas de taco bem encerado, com uma penteadeira brilhante, praticamente nova. E foi através daquele espelho, sentado na beira da cama, com uma espécie de espanto orgulhoso, de macho que sabia que a luta terminara, foi dali que ele a viu se despir para ele, meio atrevida e meio tímida.
E o que ele beijou e mordiscou, próximo ao ombro dela, foi uma pele fina e leitosa, enrugada um pouco pelo frio, um pouco pelo prazer da entrega, e o que suas mãos tocavam, enquanto arrastavam-na para a cama estreita, foram seios quentes e lisos, duros mas tenros, frágeis. E o corpo dela coube inteiro no seu corpo, embora ele mais baixo, menos esbelto e de pele encardida; e o mundo coube inteiro na sua alma.
*
Ele foi passar o Ano Novo na roça do pai de Jandira. O feriado caíra numa segunda-feira, o que facilitara um pouco as coisas, já que o Depósito de bebidas pudera fechar mais cedo na véspera de Ano - haviam tido todo o sábado e o domingo de manhã para fazer as entregas.
Quando não acontecia essa bem-vinda conjunção temporal, geralmente trabalhavam até de tardinha, ou de noitinha, era o tempo exato de sair do trabalho e correr para casa ou para alguma loja, como acontecia com muitos outros trabalhadores do comércio em geral. Natal e Ano Novo até podia ser festa de alguns pobres, mas não para todos eles, isso ele bem o sabia há anos.
Levou um carrinho para Gabriel e uma camisola amarela para Jandira. Embora o salário de motorista não permitisse extravagâncias, caprichou um pouco, afinal era apenas uma vez por ano, e além disso ele era solteiro, morava com os pais e dois irmãos, dando a devida contribuição para as despesas da casa.
A família dela morava para cima da Casquinha, pequena hidrelétrica construída no leito do Rio Casca, aquele que nascia pequenino entre as bandas de Ervália e Araponga, passava pela Capivara, depois perto de Canaã, Pedra do Anta - desquerente de abandonar suas nascentes, matas e suas natas alturas, enfronhando-se e intentando voltar para dentro das serranias de Arapongas e do Pico do Brigadeiro.
Mas cansado, conformado, e depois até alegre, decidido a mesmo desembocar lá no largo Rio Doce - as poderosas mas doces águas, às quais se misturava, atenuando a sua apreensão, suavizando-lhe o medo de mergulhar na última etapa de sua líquida trajetória, aquela que agora o levaria ao seu fim, até a vastidão do grande mistério, o mistério infinito do Grande Mar, a fusão, o sono e o esquecimento na vastidão infinita, assustante e enigmática que aguardava a todas as criaturas – bichos, coisas, montanhas, até mesmo os poderosos humanos, o que dizer, então, de frágeis e inconstantes entes como eles, rios.
Juvenal uma vez vira o famoso Doce, anos atrás, logo quando começara a trabalhar para Bartolomeu, e levara uma carga de material escolar para a região de Ipatinga, Rio Piracicaba, Monlevade – à época havia uma grande papelaria em Viçosa, que vendia sua produção para longes cidades.
*
(...) O dourado túnel de suas palavras foi então contaminado, por essa primeira visita da morte às nossas vidas, ocasião em que somos envolvidos por um tempo especial-espantado, com a impressão de que cada minuto é exagerado, infinito, e ao mesmo tempo incompleto, frágil. Dos minutos e das coisas jorrando um murmúrio ao mesmo tempo lamentoso e acariciante, dias e horas num momento parecendo nos dizer coisas demais e já desnecessárias, e noutro momento dias e horas a nos pedirem nada mais do que apalpar, aceitar, conhecer o silêncio próprio das coisas, do tempo e das coisas que nos acontecem no tempo, inclusive a morte.
Jandira era por demais ligada à irmã mais velha, imenso foi o seu sofrimento, sua perplexidade e sua revolta. Daquilo que sentia pelo ex-namorado da irmã, ela nem precisou falar, Juvenal entendeu que era um ódio absoluto, um desprezo que aniquilava, ignorava a pessoa, como se não lhe desse sequer o direito de existir. O que restou a ela foi cuidar da criança que sobrevivera, apegou-se a Gabriel como se fosse a sua mãe, assumiu para si a sua criação e o seu destino. O menino tornou-se para ela muito mais que mera fonte de alegria materna, tornou-se uma espécie de redenção, como se somente através de seu compromisso com Gabriel ela pudesse estar de novo no mundo de forma saudável, curada, livre do puro ódio e da pura amargura.
*
Era um bem alto lugar. No começo Juvenal achou meio opressivo, por demais afastado das outras casas, e da estradinha que ligava a Casquinha ao Cocais, por onde tinham vindo. Na verdade, tivera que deixar a camionete próximo à Usina, no terreiro de um pequeno armazém, cliente do Depósito de Bartolomeu – ele entregara bebidas lá, antes do Natal, no dia em que o caminhão atolara perto da casa de Jandira. A estradinha para a casa dos pais de Jandira não estava nem um pouco apropriada para um tráfego mais pesado e, além disso, sempre havia a possibilidade de chuva. Ele achou melhor não expor a F-350 a tanto desgaste.
Andaram uns dois quilômetros de volta pela estradinha do Cocais, e depois viraram à direita, quando então iniciaram íngreme subida.
*
(...) Mais do que a cisma de mineiro típico, Pedro Farias tinha um pouco da admirativa melancolia própria de Juvenal. E foi essa espécie de afinidade, de perplexidade admirada com as coisas e com as pessoas, que os aproximou quase instantaneamente.
Num átimo, já estavam num banco pequeno, tão velha e forte madeira, embora meio carcomida pelo tempo. Mas o banco acolhendo, com sua silenciosa antiguidade, aqueles dois homens que naquele momento buscaram-no, ajudando-os a se entregarem a momentos de enlevo, como se os caminhantes que ali repousassem pudesse experimentar uma espécie de retorno às origens das coisas e do tempo, um indefinido mas pacificado louvor da alma, que fazia a pessoa se sentir grata e saciada com tudo que a cercava. Uma gratidão, um louvor e uma paz que geralmente se dá em companhia de outra pessoa, não propriamente de pessoas amadas, mas também com alguém apenas conhecido, e até mesmo desconhecido.
E Juvenal e Pedro Farias puderam vivenciar esse raro instante juntos, nos mesmos breves minutos. Era uma espécie de enleio, de ternura da pessoa para com o mundo e com os outros, e de ternura do mundo e dos outros para com a pessoa.
Algumas vezes, esses momentos de comunhão costumam aparecer em momentos de religião, ou encontro de multidões. Mas, na verdade, esse enleio acontece com frequência mesmo é lá na infância, na época em que a descoberta das coisas do mundo é sempre feita com frescor e magia, com espanto e com alegre admiração. E, talvez, esses parcos momentos de retorno do enleio, em nossa vida adulta, sejam apenas uma rememoração, ou uma convocação para resgatarmos aquela abertura para o frescor do mundo, que vivenciamos a cada momento na infância.
Ou um alerta para não nos deixarmos embaçar, ou nos iludir tão comodamente por aquilo que é importante e profundo apenas na aparência; para não nos deixarmos distrair pela presunção, apreensão e sedução impostas pelo mundo adulto, pelo cotidiano que nos afasta do desvelar das coisas, do Ser e do Mistério, sempre à nossa disposição.
Naqueles instantes, Juvenal e Pedro Farias sentiram como que uma espécie de doce zumbido ou vibração dentro deles, uma calma quentura na alma mesma, uma coisa frágil, delicada; e também pressentiam que aquela calmaria a qualquer momento poderia e iria acabar. Algo os alertava que aquela experiência era fugaz, uma presença misteriosa do mundo que se mostrava, que entrava para dentro deles e que depois voltava a se esconder dentro de si mesma, longe do mundo, alguma coisa que se desvelava e se velava novamente.
Mas, engraçado, a pessoa que sente que esse desvelar não irá durar muito, também sente uma estranha certeza de que o terno e intenso desvelamento irá durar os instantes necessários, de que não irá desaparecer assim, de forma traiçoeira, insensível; sabe que aquela aparição invisível veio até nós de forma espontânea, e que portanto tem uma mensagem ou uma presença para nos ofertar e, assim, mesmo a gente sabendo que se trata de uma presença fugaz e misteriosa, mesmo assim a pessoa sabe, com todo a certeza de seu mundo interior, que aquilo irá durar o momento necessário para ser sentido, celebrado e agradecido.
E, lá no alto, em meio ao compartilhado enleio, eles viam com muito mais pureza e força as coisas do mundo, uma vista que a alma agradecia: ao lado da casa, uma nascente bordejada por vigilante matinha, qual vagina protegida por verde-escura púbis, um pomar de frutados cheiros ancestrais, até limão doce ali do lado do pé de lima havia, e lá mais acima parcas vacas e cavalos vivendo do seu verde-vivo capim, e ainda mais alto um ajuntamento de eucalipto, com folhagens a cantarem seus assobiantes sons nas alturas junto com os ventos.
E para o mais longe a vista volta e meia se virava e, como ave, lá a alma varava, avivarava: os outros também amplos pastos, as estradinhas, um trecho do Casca, ainda na sua serpenteante inocência, alguns pequenos arrozais, a também vibrarem em louvor ao vento, mas tocando em sussurros as suas partituras, nas baixuras perto do solo.
*
(...) No dia seguinte, o almoço do dia de Ano. Comeu-se e bebeu-se do de costume em festivos dias de roça: vinho de garrafão, cachacinha da boa cana, muito frango frito e carne de porco, por sobre grosso tutu rodelas de ovo cozido, sopa de galinha, macarronada, claro que com também claro-amarelos enfeites de ovo; depois doces, também muitos, o de figo, a goiabada, o pão dourado, o de leite – a elite da nata por fina mão fervida:
- Uma coisa ispeciale, prova Juvenale, prova... – instava-o um ávido Pedro Farias; ávido de leitosas doçuras e também ávido de um genro para a sua Jandira filha, a bela de doce pele que a ele, Juvenale, no leito aleitedoçava?
Juvenal assim a si se perguntava. E se isso fosse a verdade verdadeira, era bem-vinda novidade - herdaria metades daquela herdade; claro que não estava já a fazer cálculos de dinheiros e posses, simplesmente se sentia já parte daquele terra, como se um pedaço dele tivesse nascido naquele pedaço de mundo, que o acolhera tão de imediato e de modo tão revelador, ou desvelador.
Voltaram para São Miguel perto das quatro horas.
Na cabine da F-350 tinha visto e tocado um pequeno pedaço da calcinha de Jandira, que ela pusera lá na roça, depois de tomar um breve banho – era amarela, amarelo girassol. Ela escolhera a cor, como gratidão e sedução pelo presente da camisola amarela. Excitara-lhe sobremaneira o sexo dela, adivinhado através daquela aveludada cobertura de ouro, curvilínea e meio estufada.
Aparecia-lhe como uma peça viva, ao mesmo tempo recatada, no seu veludo estufado, e exibida no seu vibrante amarelo. Mas, na cabine, pudera se controlar, ou melhor, fora controlado por ela e pelos cuidados exigidos pela estradinha, com seus outros carros, charretes e caminhantes na tarde festiva.
Finalmente, não havia mais nenhuma interdição de pessoas e coisas e bichos. Agora, sim, podia penetrar à vontade naquele santuário enfeitado de puro ouro, até então apenas desafiador e inatingível, agora santuário ao mesmo tempo protetor e convidativo.
Mas, claro, ambos faziam questão de que ela estreasse a camisola amarela; acertara em cheio, coubera nela do jeito que ele imaginara – curta, justa, deixando os peitos salientes, as coxas chamando o olhar para os recantos mais íntimos, o tecido não muito transparente, deixando apenas entrever a brancura da pele e a sombra dourada da calcinha.
A camisola que ele não sabia se subia ou se deixava colada ao corpo dela. O cheiro de novidade do pano perfumoso, misturado com a dela bela pele. Beijava-lhe o ventre despido, depois o sexo protegido pela amarela bela calcinha, caçava com a língua uma entrada lateral para a vagina, depois mudava de direção e mordiscava a alça da íntima peça, ora na cintura ora de frente para o dela sexo, ameaçando arrancá-la com os dentes, mas novamente recuando, meio que hipnotizado meio que atrapalhado - mil detalhes mil peles mil poros mil ouros de girassol a fazerem girar sua boca, suas mil mãos, mil olhos.
- Mió do que isso, só dois disso...
- Guloso, hein... Só eu num dô conta de matar seu apetite, não, é?
- Cê já tá me matando tem é muito tempo...
Enfim a despiu, de novo na mesma cama e mesma quentura de antes. Agora, por já conhecedor, deitando-se ainda mais profundo na estrada a ele presenteada.
Cheiro de leite, de roça, queijo, de mel, de eucalipto – dela, somente belas sementes de presente e de futuro brotavam. Matava a sua fome e a dela, uma só fome de mãos e de bocas e de peles e de sexos. E o instante deles, em assim tão concentrado, sem outras fomes, outras estradas, era como se abarcasse o mundo inteiro.
*
Pois, mesmo ali, livres dos incômodos do mundo, e mesmo sem o saberem, o instante de comunhão e enleio trazia o mundo para dentre deles.
Mas, ao mesmo tempo, o mundo também os atraía para si, acolhia-os, fundia-os às coisas e ao tempo, no mágico encontro que faz com que os amantes se esqueçam por momentos da separação original, à qual somos todos estamos lançados, no momento mesmo de nascer para esse mundo; permanecendo separados, mesmo enquanto laboriosamente crescemos, ora a sofrermos ora a nos encantarmos nesse mesmo mundo, mas sempre sabendo, ou intuindo, ou aprendendo que não há outra saída, outra estrada, a não ser aquela que nos ensina que temos que andar e ser, existir neste mundo mesmo, separados ou não, fundidos ou não, amparados ou não, amados ou não.
Pelo menos por ora há que ser assim, até que venha o fulgurante, implacável e transcendente MPO – Movimento Parar o Ocidente, para aniquilar e superar a burra e brutal putrefação da Técnica e do Capetalismo.
Mas isso de MPO Juvenal só vai conhecer lá na frente, em conversas e andanças de caminhão com o filósofo espanhol González. Sem pressa, sem pressa, por ora só os amores e dores, ardores e desamores de Jandira e Juvenal.
03 - espanto, desencanto - o alto reencontro
(...) Tão enredado a ela estava que, quando se deitavam, quase podia viver seus pensamentos e emoções. Depois do sexo, ele a sentia pacificada, aquietada nos braços dele. Ele bem percebia e recebia aquele suave abandono de mulher, feito de cansaço e alívio.
Mas, apesar de se aquecer naquele baloiçar de corpos cada vez mais colados, também captava leves ondas de inquietude, irradiando do corpo cada vez mais aceso da mulher. Inquietava-o aquela fome que ele sentia brotar e crescer nela, que sentia não apenas na alma, mas no próprio corpo da mulher.
Depois de algumas semanas juntos, ela remexia-se toda de encontro a ele, colocando os seus longos dedos na tarefa de explorar o corpo de Juvenal, ora de forma mais terna e contida, testando e acariciando os seus músculos, ora de maneira mais fremente, subindo e descendo pelo seu corpo, subindo e descendo, incansável, inquieta.
Deveria se sentir lisonjeado por ofegos e carícias, mas assustava-se. Perturbava-lhe, embora perfumasse-lhe os instantes. Era na verdade como se ela não encontrasse no corpo dele aquilo que ela procurava.
Ele querendo apenas dar a ela enlevo e descanso, transmitir-lhe a certeza de que sempre estaria ali, firme como uma rocha, passar-lhe a confiança necessária, para que ela não precisasse mais se inquietar com acontecimentos que pudessem escurecer os dourados túneis de sua vida.
Preferiria construir com ela uma estrada feita de enlevo e tesão, mas com a doçura e o repouso do enlevo dominando, suavizando a ânsia e a espessura do tesão. Mas aquela espessura erótica de Jandira era cada vez mais difícil de dominar ou diluir, com ela roçando, pressionando, rodeando cada vez com mais firmeza e inquietude o corpo dele, com o viço e o vício do corpo dela - ele não podia deixar de pensar numa peça qualquer de caminhão, que buscasse por vontade própria enroscar-se sedenta, lubrificada e desesperada num imóvel, férreo e magnético parafuso. E assustava-o que ele pudesse não ser esse parafuso, ou que o seu parafuso não tivesse a força suficiente para segurar aquela peça ávida de movimento e liberdade.
Esse desconforto foi crescendo dentro dele. E foi também gerando um vago pressentimento de que, em algum momento, algo mais sério aconteceria entre eles, uma espécie de bloqueio, ou de acidente, na deles estrada.
Mas bastava Jandira estar por perto, que ele se esquecia desses obscuros temores. Principalmente quando a encontrava em São Miguel e, melhor ainda, quando iam para a Casquinha, lá nas altas terras de Pedro Farias.
O que devia de fazer era tocar em frente, com fé e gratidão, deixar-se levar pelo apelo que emanava da palpitante presença à sua frente, aceitar o abrigo que lhe era ofertado e escorregar definitivamente para dentro dos dela túneis, quentes e agradáveis - de cujo calor e reentrâncias as suas mãos e o seu sexo necessitavam cada vez mais.
E, em troca, cuidar dela, fazer o que estivesse ao seu alcance, para que tão cedo a estrada dela não fosse novamente tomada por sombras, como as de outrora, que haviam melancolicamente maculado os túneis dourados que brotavam de sua boca.
*
Mas eis que.
Ela começou a falhar uma ou outra vez, quando era sua vez de ir para Viçosa. A princípio ele aceitou com naturalidade as suas justificativas: um dia Gabriel doente, noutro dia Pedro Farias, doutra vez um trabalho extra no salão, às vezes simplesmente alegando indisposição.
Mas, o simples detalhe: ela nunca o convidava para ir até São Miguel, quando ela não podia se deslocar até Viçosa, e essa indiferença pisca-piscou a luzinha de alerta – o ciúme era amarelo, dizia o povo, como uma daquelas três luzinhas que faziam parte de sua vida de motorista.
Num desses finais de semana, em que mais uma vez ela comunicou a sua ausência, ele decidiu ir até São Miguel, sem avisá-la. Na sua cabeça, achava que ainda não estava motivado por ciúme, desconfiança, ressentimento, ou coisas assim. Simplesmente tinha decidido de última hora, e também queria fazer-lhe uma surpresa.
Foi de ônibus, num sábado à tarde. Antes mesmo de descer na praça de São Miguel avistou Jandira, no meio do grupo de pessoas que esperavam passageiros, ou que embarcariam para Canaã ou Araponga. Ela olhava fixamente para a porta do veículo, numa expectativa quase sorridente; imediatamente, imaginou que ela soubera de sua vinda, ao telefonar para o orelhão próximo da casa de seus pais, em Viçosa. Como viajara bem atrás no ônibus, e a fila para sair se demorava, como sempre acontecia com o povo da roça, pensou em lhe acenar da janela. E ainda bem que por muito pouco não o fez.
Pois eis que.
Jandira já não olhava para dentro, agora olhava e avançava para a porta do veículo, sorrindo e decidida indo, mas também meio que tímida, em direção a algum passageiro que descia; ou talvez passageira, ele ainda alimentou essa última esperança, que imediatamente soube falsa, pois o rosto sorridente-recatado de Jandira claramente indicava que a sua espera não era exatamente por uma mulher.
Viu o deles encontro. Viu-a abraçando muito discretamente (em cidade pequena tudo se observa) um homem mais alto do que ela, e bem mais alto do que ele, Juvenal. Já tinha visto uma foto do homem, e tristemente soube de quem se tratava. As suas bolsas de viagem, indicando que vinha de longe cidade, confirmavam a sua suposição. Sabia que o homem da foto morava em Ouro Preto ou Belo Horizonte.
Oh, Juvenale, os males com que os punhales do mundo nos dilaceram, sempre sem prévio aviso! Os primeiros cortes nunca são os mais profundos e dolorosos, são apenas o anúncio daquilo que está por vir. Nunca sabemos até onde eles irão, nunca sabemos o quanto aquilo mudará nosso destino, o quão estranha se tornará nossa estrada no meio do mundo e das pessoas. É um anúncio que vem como um choque súbito, trazendo espanto e desorientação e, claro, embora não seja ainda a mais funda, traz também a dor, ela também súbita e lancinante, como se a alma fosse picada por uma agulha de temida injeção, tal como em infâncias.
Mesmo no torvelinho de sua doida-doída perplexidade, viu que atrapalhava a passagem dos outros. Saiu do corredor e encostou-se numa poltrona, tomando cuidado para não ser visto lá de fora.
*
(...) Quando deu por si, o ônibus já estava em plena estrada para Canaã. Não tivera iniciativa de dar sinal de parada lá na pracinha; sentia-se desgovernado, levado pelo mundo e pelo destino. Deixou-se ir, sem mais tentativas de resistência, sem conseguir se decidir aonde descer. Se fosse o caso, iria até Canaã, ou mesmo Araponga, e voltaria no próximo ônibus. Tudo, menos parar em São Miguel, tristemente intuía que a cidade agora lhe estaria interditada, a não ser quando fosse a trabalho.
Com a habitual expressão de melancolia admirada, tornada mais dramática pela recente cena, Juvenal via um pacificado desfile de verdes e vegetais entes a convocar-lhe a presença, a exigir-lhe o olhar. Os entes espalhavam-se pelas várzeas e pastos: árvores, tocos, cercas, casas, um que outro pássaro imóvel, riachos, matas, e também os próprios pastos e várzeas e nesgas de céu.
Mas, desta feita, o ente Juvenal estava doente; adoecido de melancolia mais forte que a costumeira, aquela que nunca lhe fazia mal, ao contrário, alimentava-o, acarinhava sua alma. Não possuía, pois, disposição para comungar com os outros entes do mundo, testemunhar tantas presenças ao seu redor, como sempre acontecia quando estava na boleia de seu caminhão. Por quanto tempo ainda não se sabia, mas a abertura dele para a presença das coisas do mundo estava fechada.
Mesmo aberta a janela, o seu olhar não via a paisagem presente. Presenciava cenas e instantes passados. Passados ali por perto mesmo, na Casquinha. A casca de proteção se quebrara, gorara a sua certeza. Acertava agora o sentido oculto de conversas e de fatos. E fatal se tornara a constatação: o inconstante Jeremias nunca deixara Jandira dele se desligar, ou ela dele nunca quisera se libertar.
Decidiu que desceria na Casquinha, e iria até a casa dos pais dela. Precisava retomar aquelas cenas, rever fotos, confirmar histórias. Certamente que lá seria o último lugar onde ele se encontraria com Jandira e Jeremias.
04 - fogosa menina, cretino galã
A menina havia sido avisada não poucas vezes. Espontânea, alegre, a branca pele lisa, tesa, às vezes se expondo por demais aos olhares dos homens, como se fazia cada vez mais nos novos tempos.
Aquilo não era lugar para uma moça de criação como a dela frequentar. Tomasse mais juízo, ainda não tinha nem seus dezoito anos, as coisas iriam acontecer no seu devido jeito, isso de namorar e casar era questão de tempo para uma moça bonita e que se desse o respeito.
- Home é que nem biscoito, some um e aparece oito...
- E quem falou que eu tô caçano casamento? – Jandira na lata respondia à irmã Carminha.
- Ah, tá caçano vadiagem, então? - na luta a mãe Dorinha entrava, Jandira acuava.
- Uê, mãe, toda moça que se diverte é vadia, agora? Que eu sei, a senhora num perdia um baile lá no Turvão.
- Mais era baile de verdade e de respeito, num era essa sem-vergonhice e essa baruiada lá no Bailão desse sujeito... Tão falano que até a tal da maconha já apareceu por lá...
- Essas coisa é pra quem procura, pra quem tem a cabeça fraca, mãe.
E assim a contenda familiar prosseguiu por algum tempo, mas sem muita tensão. Afinal, Jandira ficava só na vontade de frequentar o lugar, vez por outra dizia que algumas colegas de escola haviam-na convidado para conhecer o Bailão que, segundo elas, não era nada daquilo que o povo dizia. Era um local arrumadinho, moderno, sem confusão e sem desrespeito, apenas era um lugar animado, com decoração e luzes diferentes, próprio dos novos tempos.
O Bailão do Jerê mudara de São Miguel para a beira da estrada de Canaã, logo depois da venda do Tonico Barbosa. Muita reclamação de vizinhança e devotos, lá no lugar antigo, na subida do Rosário, logo depois da entrada para o Buraco do Tanque. Ao se mudar, Jeremias, além de encontrar um lugar bem afastado, mandou fazer uma cabana de bambu e sapé, bem maior do que o antigo espaço.
Como no lugar antigo ia muita gente de Canaã, e mesmo alguns de Estevão Araújo, São Domingos, Araponga, agora estava bem melhor localizado, bem no meio de São Miguel e Canaã, e mais próximo das outras localidades; o movimento somente progredia, agora a sua casa se firmava de fato, provocava comentários de respeito, e de despeito. Jeremias era visto como homem de iniciativa, de acerto na vida.
- É o tal negócio, né, cambada? Tem males que vem pra bem... - fazia questão de atirar bem no meio da praça de São Miguel, em altissonantes e meio que embriagadas palavras, mormente em momentos de entradas e saídas de missa.
Ao que, do bando que sempre o rodeava, um mais bajulador emendava:
- Deus faiz é bem certo por linha torta... – provocando católicos passantes.
Ou outro, ainda mais bajulador e ainda mais altissonante-alterado-aguardentado:
- Vai rasgano, Jerê!!!
Por essas e outras vulgaridades e afrontas, a maior parte da cidade não se iludia com o momentâneo sucesso de seu comércio, de seu inferninho, como diziam alguns. Sabiam que daquilo tudo não sairia uma pessoa melhor, menos destemperada, como Jeremias sempre fora. Até que ele não era de má família, de gente lá da Capivara, o pai fora criado como agregado na casa do velho Dorinho Freitas, antigo chefe dos bernardistas, adversário político de Alfredo Miranda, pai de Bartolomeu, lá na Capivara.
*
(...) Mas, nem tanto assim a família de Jandira precisava se preocupar, com as sensuais atenções que ela despertaria no Bailão. Pois, quando lá pisou pela primeira vez, já tinha forte protetor - o próprio sujeito.
Ficaram sabendo que Jeremias já tinha visto a menina, e de cara seduzido ficara. Acontecera num casamento, com ela como madrinha. E que encantadora madrinha. Que atrevimento delicioso nos seus dezessete sorridentes anos, seu vestido vermelho, justíssimo da cintura para cima, os seios já formados, não com o clássico atrevimento dos bicos apontando eretos – afinal estava-se numa igreja - mas ao menos insinuando a rodela de mamilos e suas redondas e firmes formas, dando uma ligeira impressão de que queriam sair para fora do vestido, exibir-se para a multidão.
Uma adorável e juvenil sedução, que parecia ainda não saber de seu poder. Só essa inocência poderia explicar a tranquila postura de Jandira dentro da igreja, naquela ingenuidade marota, sorridente, exibida.
Depois daquele dia, nunca tirou a menina da cabeça. Um dia teria que abraçar e acariciar aquele corpinho, beijar aquela pecaminosa boca vermelha, contrastando com aquele colo branquíssimo, e com aquele começo dos seios, que o decote em diagonal do vestido deixava ver.
*
(...) Além do bar, negociava carros e motos. Aproveitando que precisava reformar um carro que barganhara recente, mandara pintar da cor do vestido que ela usava, no dia em que nela reparara pela primeira vez como mulher. Era a época em que fazia sucesso a música “Fuscão Preto”. No dia de buscar o carro na oficina, levou a menina junto até Viçosa e lhe fez a surpresa: sua princesa merecia andar não num simples Fuscão preto, mas num Fuscão da cor da paixão, para brilhar como ela.
E, no mesmo dia, levou-a a uma sua conhecida em Viçosa, para lhe tomar as medidas do corpo, não achara prudente fazer a encomenda com alguma costureira de São Miguel; presenteava-a com um vestido vermelho, mas mais ousado, com um tecido um pouco mais fino que o outro, o que deixava os bicos de seus seios levemente à mostra. Assim, ela contara à irmã Carminha.
Ainda sentado sob o crepúsculo, Juvenal em nenhum momento tinha olhos para a paisagem que até então tanto o relaxava; o antigo enleio não lhe coloria a ensombriada e assombrada alma. Fitava era a colorida presença que o encantara, tal como ao outro, com seu sorriso e sua doce marotice.
Mas ele agora não via apenas a sedução de uma jovem bonita e sorridente. Via a sedução de uma mulher preparando-se para fazer pleno uso de seus dotes físicos e de seu apetite sexual. Aquele mesmo apetite, com aquela inquietação na cama, que às vezes o perturbava, e que ele desconfiava que não era inteiramente voltado para ele; ali, com o olhar fixo na imagem de Jandira, explicava-se a razão de suas cismas e pressentimentos.
E a fotografia continuava a desafiá-lo e a instigar a sua atormentada e delirante imaginação. Via-a nos escuros das noites, estreando para o outro o vestido vermelho, com o fuscão parado nalguma estradinha, ela por cima de Jeremias no banco do motorista, penetrada por ele, ele abocanhando-lhe os peitos.
Ela, debruçada sobre o seu sexo, sugando-o, enquanto ele lhe apertava os seios ou pressionava-lhe a delicada nuca. Ela, com as costas na porta do carro, enquanto ele lhe chupava e bebia de sua seiva, ou deitada e ofegante no seu banco, com ele gemendo por cima dela. Sua imaginação viajava, veloz, delirante, inquieta, raivosa.
Mas, pior que tudo, era sentir-se excitado com os voos da própria imaginação, envergonhava-se e enraivecia-se com aquilo, achava que não era coisa de homem de verdade; não entendia que nada havia de doentio em seu cio, que era apenas uma forma de possuir Jandira através do desejo, da posse e do prazer do outro. Não entendia que era apenas a posse imaginária que restava ao homem traído ou abandonado, e cuja necessidade era inevitável, por mais doloroso e humilhante que fosse.
Quis rasgar em pedacinhos a fotografia, numa inútil tentativa para destruir de forma absoluta aquela provocante e atormentadora presença em sua vida, um definitivo gesto de libertação, através da violência e do ódio; mas se conteve.
Pois entendeu ou pressentiu que aquele era apenas o início de uma longa história de desejo, sofrimento e abnegação. Sabia que não conseguiria fugir ou desistir tão facilmente de Jandira, e algo lhe dizia que também ela não conseguiria deixá-lo em definitivo.
Entendeu que, somente após cumprir aquela longa jornada, poderia um dia retornar à sua estrada própria, e recuperar sua paz, aquela serenidade que lhe permitiria olhar de novo a paisagem que se desvelava lá do alto, e reviver aqueles misteriosos e gratificantes enleios em companhia de Pedro Farias. Sentir aquela espécie de retorno à pureza das coisas, aquele louvor na alma.
Com ou sem a companhia de Jandira, com ou sem a presença dela em sua estrada.
*
(...) Pedro insistiu para que passasse o dia ali, deu a entender que Jandira não apareceria. Juvenal chegou a considerar com alívio a ideia, poder fruir mais um pouco da companhia e do consolo deles. Mas era-lhe verdadeiramente impossível ficar próximo daquilo que lembrava de maneira tão intensa a de Jandira presença, ainda desejável, naquele cenário que só deles.
Precisava sair dali, andar, andar, andar, até mais não poder, assim talvez aquela infernal mistura de álcool azedo, de gosto amargo, de cabeça doendo, desaparecesse de sua vida, junto com as ainda mais amargas e azedas lembranças do dia anterior.
Pedro Farias mais sentiu do que viu: foi com quase lágrimas que ele se despediu. Naquele momento teve certeza de que Juvenal não faria nenhuma loucura com relação a Jandira e Jeremias, nem com relação a si mesmo; assim lhe veio a forte fé. A fé de que Juvenal não era homem de fugir de seu destino, de que suportaria beber de sua dor, e um dia retornar ao seu caminho; comunicaram-se em silêncio, lá no alto pasto.
NOTA
Neste livro não vi sentido, ao menos por ora, em oferecer aos leitores acesso à primeira e última das estórias, por serem curtas, apenas contos – dez a vinte páginas.
Optei por mostrar apenas trechos da novela Juvenal e Jandira.
Caso alguém faça questão de conhecer trechos dos contos, antes de se decidir, entre em contato.
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