
Isaía, Irma e Baiano
‘E o verbo se fez carne e habitou tenda entre nós’
(João 1, 14)
Isaía, aí está, conforme prometi a mim mesmo e a González, escrevi a morte de Baiano e um pouco da andança de vocês. Mudei os nomes, não sei se ficou mais literário ou não. Sei que você, Baiano e Irma eram uma única e mesma estrada. Santíssima e Sacaneadíssima Trindade.
Na verdade, escrevi o grosso da obra em 1991, no ano mesmo da morte de Baiano. Talvez outros fizessem melhor, mas fui eu quem estive em vossa tenda, e se eu não o fizesse outros jamais poderiam fazê-lo. Mesmo que você e Irma não estejam mais vivos, ou que jamais venham a tomar conhecimento da obra, ainda assim ela está perto de vocês.
Ela vive de vocês. Estranho tempo. Amargo. Meio de mentirinha, e admirável em suas contradições de fascínio e pobreza. Quando escrever sobre a tragédia dos homens parece ser inútil, e mesmo ofensa à fatuidade da modernidade, então a Voz talvez devesse até mesmo se esquecer de como falar de vocês, a vocês, e aos de vossa planetária família sem-a-Terra. Mas a Voz insistiu, e eu a custo persisti, e mesmo des-animados vocês são a fonte dessas palavras, o vosso antigo e cada vez mais antiquado clamor.
E que o Anjo do caos e do apocalipse guarde com carinho nossas modernas almas medrosas. E que venham os cogumelos atômicos, que viva Putin! Assim, talvez voltemos a ser humanos
01 - nevoenta nênia de inverno
- Baiano, diz aí...
Isaía e Irma? Só Isaía só?
- Baiano, esse Baiano... Óia, Irma, esse Baiano ainda dorme...
A voz solta, cantante, como se anunciando que o seu dono estava prestes a estourar de rir, a própria voz parecendo querer se dilatar, fragmentar-se em amargas explosões de riso.
- Coitadim, deixa ele... Num cumeu hoje ainda, né...
E a voz de Irma, de uma enregelada delicadeza, que soubera se manter através dos anos de lixo e frio, mas essa docilidade da voz não mais lembrando encanto e simpatia e sim submissão, resignação, essa fragilidade refletindo a impotência e a incompreensão que arrastavam, mundo afora, aquela que falava.
Mas não era certo que Isaía enchesse o espaço circundante, com suas risadas curtas - inofensivos e insistentes guinchos a coroar suas incansáveis observações. Não era certo, porque fazia muito frio.
E Baiano achava que iria morrer: “O frio da morte... O frio da morte nesta noite...”, palavras assim lhe convulsionavam a consciência.
Durante quase toda a tarde, ele sentira o seu corpo cortado pelo ar tornado quase gelado, que insinuava uma melodia inaudível, uma balada de sons que se mostrariam vivos e cristalantes, na gritante beleza azul da tarde!
*
Mas havia aqueles tentáculos invisíveis e de soturna umidade, que pareciam emanar do próprio espaço ar, tentáculos de cavernosa vida que impediam o vagar do próprio ar - o vento então se movendo lenta e pesadamente, como se a gemer, a lembrar que poderia sim levitar, caso não estivessem presentes aquelas porções polares enviadas do sul.
Essa obstinada melancolia dos altos ares ofuscava, até mesmo para os passantes e passeantes na cidade, a novidade da poesia azul-invernosa do céu, e o seu azul nítido passava então a negligenciar a si mesmo, por falta dos espectadores atravessados pelo frio lá no solo: “culpa do nublado lá longe, culpa do nublado, que veio lá do sul” aflito e nu brado parecia brotar do azul do campo celeste (lá pelos lados da universidade); canção sonolenta, como se as próprias e insignificantes ilhas de azul estivessem se enrolando em cobertores, prestes a dormir e desaparecer, entregando todo o domínio celeste ao oceano cinzento.
Era assim, frágil lamento azul, canção triste, nênia cada vez mais desamparada, que se punha a navegar, soluçante e desorientada, através do espaço que circundava a cidade - esse murmúrio tristimáginário da porção lavadamente azul do céu, indo de um a outro cume dos morros que, desde tempos, estabeleciam a área de firmamento que cabia à cidade; o murmúrio lamentosamente se justificando às outras porções do céu, às casas e a edifícios e a alguns passantes inquiridores, explicando e alertando sobre a invasão do hálito nublado e gélido.
E a canção vaporosa voltando depois ao seu ponto de partida, aos escassos domínios onde o luzidio azul se configurava como inútil, como incapaz de avivar nas coisas e nas pessoas arroubos de aconchegante alegria, esperança ou gratidão.
Era azul glacial, inalcançável, desprovido de atrativos para ser alcançado: ilhado azul em meio a oceano de nuvens sujas, ferruginosas, cansadas, a tarde estremecendo à aproximação daquele poderoso mar que, espraiando-se pelo ar, a tudo silenciava com seu imperceptível e gélido marulhar, calando de vez a frágil canção que despontara da outrora ilha azul, agora empalidecida, esbranquiçando-se, finamente. Afundada.
02 - o chicote da poética neblina
Baiano afunda o rosto, procura encaixá-lo mais comodamente na sacola de supermercado, que Irma encheu com algumas roupas e que lhe serve de travesseiro. Para ele, aquela espécie de música triste, que achava que vinha do alto, não era um lamento pela possibilidade de sua morte; ao contrário, parecia na verdade um hino de acusação. Mas, procura expulsar de vez esses pensamentos pesados, que o haviam sufocado durante o entardecer.
Suspira, cansado: era por demais triste imaginar que nem o céu se comovera com a sua doença, imaginar que ele apenas incomodava a plenitude celeste, e que a tarde somente estava carrancuda porque ele ameaçara morrer em pleno dia, exposto, a céu aberto, contaminando a sua beleza.
Os três mendigos dormiam, havia umas três semanas, num descampado relativamente próximo ao centro da cidade, quase ao fim da Rua Dona Gertrudes, do lado esquerdo de quem vinha da praça. Do outro lado da rua, à direita, num amplo prédio aonde antigamente funcionara um colégio, ficava o Posto de Saúde; à esquerda, ladeado por um pequeno barranco, corria o ribeirão São Bartolomeu e, atrás, havia uma horta, teimosamente cuidada pelo idoso pai de um dos padres da cidade - o terreno na verdade ocupado em sua maior parte por pés de mandioca.
Uma noite, vindo a pé pelo asfalto, pegaram carona no caminhão de Bartolomeu, que voltava das bandas de São Miguel, transportando varas de eucalipto. Em troca, ajudaram a descarregar a carga no descampado.
Depois do trabalho, como já era tarde, e Bartolomeu sabia que eles não tinham um lugar fixo para dormir, ofereceu-lhes um pedaço de lona, para que improvisassem um abrigo. E esse fora construído aproveitando-se o espaço que ficava embaixo de uma Kombi em manutenção, já com bastante tempo de uso.
Bartolomeu erguera o veículo uns dois metros acima do chão, mantendo-o com caibros fortemente pregados e amarrados em toras de eucalipto fincadas no chão, para poder trabalhar melhor nos reparos que se faziam necessários, principalmente no motor e na caixa de marcha.
Com a lona cobriram a parte frontal, que dava para as últimas casas da rua, na direção da praça, e a parte traseira de certa forma ficara protegida por uma cerca de bambu, que separava o descampado da horta. Como a sua mulher tinha preparado janta para ele e os empregados, Bartolomeu mandara-lhes um pouco de comida, junto com uma esteira e uns cobertores velhos. E ali haviam feito sua morada, ao que tudo indicava iriam passar o resto do inverno no descampado.
Baiano agora olhava para Isaía, sentado sobre as toras de eucalipto, mas num lugar mais elevado do que aquele onde ele próprio ficara a cismar, durante quase toda a tarde.
Isaía tinha se acomodado no alto, na balouçante plataforma constituída pelo curioso entrelaçamento das longas varas de eucalipto; ele mantinha as pernas estiradas ao longo do plano inclinado de algumas toras, as mãos segurando de encontro ao ventre um embrulho razoavelmente volumoso. Se tivessem conseguido comida, Isaía certamente começaria a falar e gracejar, já não era certo que fosse se deixar abater pela escuridão e pelo frio. O jovem, deitado debaixo da carroceria da Kombi, desviou os olhos do embrulho, dirigindo-os novamente para o rosto do companheiro, na resignada expectativa de que ele disparasse a falar.
Isaía se mostrava de perfil, o olhar voltado para as bananeiras junto ao ribeirão, o rosto imóvel, impreciso, sondando e sondado pela noite, as costas firmes, como se apoiadas num encosto imaginário, a parte de cima do corpo oscilando, levemente, devido ao balançar de uma tora menos firmemente presa; no mais, o corpo se mantinha quieto, a barba grosseira e insistente ajudando a tornar mais difícil adivinhar o jogo de suas feições em meio ao escuro, e a resposta dos músculos de sua face, face o escoar das parcas águas do ribeirão abaixo dele.
Baiano ainda a fitar por instantes, um pouco expectante, de dentro de seu refúgio, carroceria, de dentro de seu cobertor, já rasgado, seu olhar tentando rasgar o breu, denso, a buscar molemente o companheiro absorto “ Abre o rosto, Isaía, abre...”. Volveu, após algum tempo, os olhos em direção a Irma. Para isso, teve de endireitar a cabeça e o corpo, deitando-se de barriga para cima, alongado.
“ Como é que pode, essa mulher? ”
Recortada contra o nevoeiro (que ainda não envolvera completamente o descampado, mas já cobria toda a rua e parte do prédio do Posto de Saúde) Irma parecia executar uma dança silenciosa, árdua. Seus movimentos desajeitados, seu incerto vaivém através do descampado, sua ameaças de tropeço, o tremor que se vislumbrava nos seus membros, a cor de sua pele fundindo-se e reaparecendo na noite, a Baiano tudo aquilo parecia vir de longe, de um lugar estranho. Irma parecia uma figurante deslocada num balé impiedoso, um bloco de gelo enegrecido a manchar indevidamente a alva e evanescente massa de névoa atrás dela, informe e cambiante volume a chocar-se com outros e invisíveis blocos de gelo, hostis à presença da mulher, como se esses secretos e branquíssimos bailarinos estivessem plenamente cônscios de seu direito em desprezar e açoitar a negra e intrusa figurante. De fato, ela não parava de andar, tropeçar, estacar, girar o corpo...
Esse toque de estranheza mesclou-se com a debilidade orgânica de Baiano, envolvendo-o no seu torpor e mistério, liberando-o para sua própria dança em paisagens imaginárias, e por momentos ele mergulhou novamente no estado de semidelírio que parecia persegui-lo desde a tarde. E Baiano não concebeu mais o poste silente luz, o prédio Posto de Saúde, as casas, somente retendo desolada várzea, que tinha ao fundo muralhas andantes de neblina irada, a punirem com rajadas sarcásticas a estrangeira que, com sua pequenez e deselegância, tivera o desplante de destoar daquele lugar altivamente hibernal, implacavelmente inacessível à cansativa presença humana.
Fechou os olhos, deitando-se de vez na estrada etérea e de uma limpidez estéril, que parecia pairar acima do campo onde um pequeno corpo preto contorcia-se em meio a uma alva névoa silenciosa, vingativa. Estranha terra, pântanos e pradarias cercadas por densas e espumantes massas de negrume, em nenhum momento delimitadas pelos barrancos, corgos e capoeiras familiares a ele, Baiano.
Mas ele dormia, levitava ao longo da estrada, já não tomava parte no desumano castigo sofrido por Irma. Ainda os pensamentos perguntaram: “Isaía, já foi dormir... Dorme, Isaía, com Irma lá, ajuda ela lá nesse mar esquisito...”.
*
Acordou. “Quem, que foi?”. A mulher. Falava no seu modo assustado, às vezes incompreensível, queixava-se timidamente das brincadeiras de Isaía. Agora havia pão nas mãos de Isaía.
- Vai lá Irma, ele é fazendeiro, tô te falano... Baiano num acha ruim não, esse Baiano tá doente.
Os nervosos pensamentos do doente não desmentiam o galhofeiro: “ Sua besta, para com essa risada, me deixa sussegado! ”
Isaía continuava sobre o monte de toras, mas já não olhava para as bananeiras, voltara-se para o lado da rua, o Posto de Saúde. Com o pão e o queijo, atraíra Irma para junto de si. Ironizava-a, querendo saber o que ela resmungava há poucos momentos, em seus tropeços e andanças debaixo do poste, próximo ao pátio do Posto.
- É recado para o fazendeiro, é? Mulher maluca, medrosa... Diz coisa com coisa, agora que acordou o Baiano.
Durante todo esse tempo, ele via a comida nas mãos de Isaía. Mas, de fato, o que o acordara não haviam sido suas risadas, e sim as queixas da mulher, depois que saíra do nevoeiro. Há quanto tempo durava a brincadeira boba e cruel, de pão e fome, de gato e rata? Há quanto tempo haviam chegado?
Ele já não sabe, parece ter a cabeça dentro do estômago, dentro de um recinto formado por paredes de carne, paredes melancólicas e rodopiantes, fazendo girar-lhe até os pensamentos, mas, engraçado, a cabeça não quer sair de lá, não quer se firmar nem firmar as paredes famintas e furiosas à sua volta, os pensamentos sofrem com o rodopio, mas algo teima em impedir que sua voz peça o pão ao companheiro.
Certamente, Isaía esperava uma atitude mais irritada, gestos mais contundentes, para acabar com o jogo. Talvez fosse o momento de Baiano comunicar a eles o seu receio ou pressentimento da morte. Mas ficou apenas a olhá-los, como se também tomasse parte na brincadeira, como se num passe de mágica fosse recuperar a disposição para suas habituais algazarras, ora ásperas ora pueris.
Ah, sim, ele deve ter ficado muito tempo assim, a fitá-los, a ignorar o pão, parecendo quase pacificado, quase gostando, não há raiva ou desprezo, há quase uma comunhão entre sua fraqueza e a amarga molecagem de Isaía: uma estranha proteção vem do companheiro brincalhão, os três no meio da noite, cercados e esquecidos pelo mundo lá fora.
Mas um mundo antigo o chama: dorme novamente.
*
Novamente acordado. As pernas de Irma estão próximas ao seu rosto.
Olha para cima. Um pão inteiro e um bom pedaço de queijo. A mulher balbucia, como se não devesse dirigir-lhe a palavra, parecendo temerosa de que isso possa piorar-lhe a doença. Mas há um momento em que fala mais claro:
- Foi a estudante loira, ela mesmo - virou-se para Isaía: - É, num é? Aquela que janta na praça todo domingo - sua mão tremia visivelmente.
Decidiu pegar o lanche rapidamente, antes que a mulher se agachasse e ficasse ali por perto. E, para evitar que ela o obrigasse a se alimentar naquele mesmo instante, cobriu-se todo com o cobertor, dando a entender que comia. Falou então à mulher, a voz saindo rápida e cansada, indiferente, como se o assunto não lhe dissesse respeito, como se estivesse apenas a fazer um comentário acerca de um episódio qualquer, e ao mesmo não admitisse ou não se interessasse pela opinião de Irma, ou de qualquer outra pessoa:
- Irma, eu acho que vô morrer nessa noite... – depois numa voz mais contristada, cava: - Não sai de perto daqui hoje não... Nem deixa Isaía ir pra muito longe...
- Ai, isso é coisa de dizê, cruizincredo n’ocê, vira essa boca pra lá... – sem saber o que fazer, levantou-se e deu alguns passos no meio do abrigo, mas não ia muito longe, não somente pela exigüidade daquela tenda improvisada, como pelo inesperado da situação; os seus gestos com as mãos, os movimentos desordenados do corpo e os seus resmungos – como uma repetição, em pequena escala, de sua marcha através do nevoeiro - é que pareciam lhe dar uma impressão de mobilidade, mais do que os seus passos propriamente ditos
Quis dizer mais alguma coisa ao companheiro doente, mas as palavras estavam interditadas, como seria no caso de qualquer consciência orientada para a imediata rejeição da morte, sua ou de outrem - a nossa consciência recusando, num primeiro momento, qualquer seriedade ou possibilidade à simples menção do morrer de alguém próximo no espaço, no tempo ou no coração.
No escuro, Baiano adivinhava Irma fitando-o, entre preocupada e amedrontada, e depois voltando, confusa, para perto de Isaía. Ainda bem, pois ele agora somente queria dormir, vinha tomando corpo nele uma estranha e agradável vontade ou necessidade de apenas sonhar, reencontrar-se com o seu tempo antigo. Mas, embora não os ouvisse claramente agora, Baiano sabia que, na sua típica fala titubeante e povoada de palavras entrecortadas, ela conversava com Isaía a respeito do que ouvira de Baiano.
E o silêncio do companheiro bem podia indicar que ele também estava aborrecido com sua atitude. Aborrecido por Baiano preocupar Irma com um assunto daqueles, e também por acreditar mesmo que estava muito doente, ao ponto de inclusive ser tomado por medos e fantasias exageradas. Baiano sabia que Isaía encararia tudo aquilo de um lado prático, apenas um contratempo que o privaria, por um ou dois dias, de sua companhia nas andanças e bebedeiras pela cidade. Mas para Baiano agora tudo aquilo já não tinha muita importância. Fechou os olhos.
03 - a consciência-Baiano se prepara
Pois, no ato mesmo de se abrir com Irma, a sua consciência atingira um novo estágio com relação à morte: o fato de tê-la colocado em palavras, embora poucas e apressadas, como que aproximara um pouco mais a sua consciência da sua própria morte, trazendo-a para um horizonte menos distante.
E, agora, já não há mais jeito: cabe a essa mesma consciência sustentar essa proximidade, conduzir-se condignamente perante momento tão singular. No escuro de sua tenda, o que há, então, não é mais a preocupação banal com a possibilidade de morrer ou não, ou em que momento exato da noite essa morte dar-se-á, mas sim a angustiada admiração provocada pela descoberta de que o seu morrer poderá lhe ser algo ao mesmo tempo estranho e apavorante, mas também familiar e revelador.
Era ainda tudo muito obscuro, tenso, mas o que mais impressionava Baiano era perceber que poderia, ou deveria, existir uma forma de se conduzir no seu morrer; quer dizer, ele, ainda que vagamente, começava a se dar conta de que não era a morte que o conduziria cegamente. Mas haveria uma espécie de caminhada em conjunto entre ele e o seu morrer, com ele sendo o seu próprio morrer, e não agindo como alguém que iria fugir de sua morte, por não poder suportar seu próprio abandono; e por não poder suportar-se no abandono em que se encontrava ao fim de sua vida.
Parecia meio maluco aquilo, mas era com um quase alívio que ele recebia uma obscura mensagem: morrer não seria como um castigo, mais um entre tantos castigos ao longo de sua tão atribulada e breve existência. Não, morrer seria agora uma espécie de redenção: além de não ter que necessariamente passar por uma morte humilhante, desolada, apavorada, cega, o morrer poderia trazer-lhe a grandiosidade, a consistência e a lucidez que a sua miserável e perplexa vida no meio dos homens nunca lhe ofertara.
Sim, ainda era tudo muito obscuro e às vezes assustador, mas sem dúvida fora detonada nele uma abertura, uma espécie de nova e última tarefa ou possibilidade, cujas instruções precisas ele aguardava lá na tenda, apreensivo, em suspenso. E, depois de alguns instantes, quando ele praticamente tinha se esquecido da presença de Irma e Isaía, algo começou a se delinear nessa nova percepção das coisas. Ele não saberia dizer como nem porque, mas parecia que alguma coisa libertava os seus pensamentos das costumeiras amarras, e ao mesmo tempo parecia que ele é quem proporcionava a aparição dos novos e repentinos impulsos.
E então as instruções da tarefa começavam a se insinuar; e pareciam dizer que o próximo passo daquela caminhada conjunta eram as suas lembranças, sim, as lembranças, e as primeiras que se lhe insinuavam, que tentavam fluir mais firmemente em sua memória, eram sobre uma certa viagem de trem que fizera em companhia de seu padrasto. Ainda ofegando, sente que essas imagens estão quase se consolidando, admirado de que o começo da caminhada com a morte, a sua morte, se dê de uma forma tão natural e familiar, e ao mesmo tempo tão estranha e inquestionável.
Então, definitivamente, ele não se importava com o que Isaía estaria a pensar, qual o grau da preocupação dele com o seu morrer – embora ele se preocupe com relação a Irma, pois a mulher, mesmo não admitindo para si própria, também tinha percebido uma singular atmosfera no momento em que ele lhe falara, e lhe acompanhara com os olhos através do escuro da tenda. Ele intuiu que a presença dela seria necessária para a sua caminhada, não apenas com relação aos cuidados práticos, mas uma necessidade que viria de sua própria e simples presença, como se o fato de Irma ter intuído a aparição do mistério da morte fizesse dela uma assistente inevitável dos momentos que se avizinhavam, ou desse a ela o direito de acompanhar, mesmo que de fora, aquela caminhada singular.
Quer dizer, naquela sua nova maneira de perceber as coisas, a consciência de Baiano encarava como um estranho privilégio testemunhar sua própria morte e, então, aquele que morria sentia-se ousado até mesmo para querer compartilhar, com os mais próximos de sua existência - tão poucos, no seu caso - aquela espécie de revelação que se daria ao longo da noite; e Baiano já se atrevia a desejar até mesmo a presença de pessoas como o espanhol González, o caminhoneiro Bartolomeu, e quem sabe, até Isaía – embora não lhe parecesse haver muita compatibilidade entre os destemperos de Isaía e a reverência necessária à morte, ou pelo menos, à sua morte.
Mas, a verdade é que nem tudo era assim coragem e luminosidade para Baiano, nesses momentos; claro que ainda havia medo, uma angústia que pesava, havia até mesmo o receio de estar ficando meio amalucado com aquelas impressões, como se em verdade elas fossem fantasias, das quais ele lançava mão para não ver, de fato, a face da morte - apenas uma espécie de fuga, de refúgio.
Por ora, apesar da apreensão, das dúvidas, Baiano se entrega adequadamente ao chamado dos primeiros passos, às lembranças. Como se a consciência buscasse se reconhecer nas suas vivências ao longo do tempo, para melhor poder se posicionar perante o seu próprio morrer – ou como se buscasse uma condigna, nostálgica e comovida despedida, embora também desamparada e apavorada.
*
Sim.
Ele finalmente tinha a noite, a outra, o mundo antigo, o mundo que ainda não tão mal tratava as pessoas. Tinha o pão: já que iria mesmo morrer, poderia comer antes, se quisesse. Guardar o pão, através da noite, como numa outra noite:
“aquela noite me atravessa-me estradeia e brilholhou pra mim de novo no ovo o mosquito mal frito era dnoite noite parecendo meia fria fabricante de ventos minha fia minha vida Irma não se perdia por tanto esperar mas era dnoite comôme dizia e ia lá no interior do norte de Minas Gerais e tinha mais gente só nóis dois não era mais gente com cara de quê? cara de quem comeu e não gostou e naquele tempo eu ainda não sofria do estômago por isso não vomitei não lembrei de fazer ih! eu não sabia o que podreiria ser isso Irma mas com que cara de bosta eles tavam parecia que eles tinham comido o meu ovo frito com mosquito mas mesmo eles assim eles carregaram o nosso trem-de-ferro e quem disse que eles tinham o direito de ficar o dia inteiro à-toa e não carregar o nosso ou qualquer outrem? pois então Irma preta fudida essa história é a primeira história a menina moreninha Maria José eu conheci depois disso mas eu não quero ela agora eu quero que ela seja a última depois de todos e de tudo ah! só de pensar que eu vou ter o resto da noite quer dizer então o resto da minha vida pra tentar me lembrar dela ah! então eu não me importo de morrer tão triste tão feio doente e cagado mas dessa viagem no interior do norte de Minas é que eu sempre me lembro mais Tetente muitas vezes me levou depois que passou a morar com mãe ele me levou por toda aquela região da Bahia onde a gente morava e mais um pedaço grande de Minas Gerais: tanto rio tanta serra tanto trilho tanta cidade um trem-de-ferro é um trem-de-ferro é um trem-de-ferro não é como um carro ou caminhão que tem de dividir a estrada e o mundo com todo mundo, a estrada é só do maquinista e de quem viaja perto dele ah Irma se eu tivesse mais tempo e não tivesse tão fraco eu podia lembrar de tantas coisas mas essa viagem eu lembro deve ser porque naquela noite eu guardei pão mas pão com bife Tetente às vezes era injuado e injuriado exigente quando ele viu o meu ovo com mosquito ele parou de comer largou tudo e pediu um pão com a metade do bife que tinha sobrado no prato dele o meu eu já tinha comido e mandou embrulhar e depois disso perdeu de vez a paciência discutiu com os carregadores ameaçou telefonar pra alguma autoridade da estação ou da cidade e eles pararam com o jogo de purrinha e de empurra-empurra com a desculpa de que ainda faltavam mais dois companheiros mas ainda pediram mais uma rodada de pinga com limão pra esquentar pra esquentar e torresmo fritinho na hora e depois é que foram colocar a sacaria pra dentro do vagão estou cansado com sono de novo cês já foram dormir seus putos? espia o friofrio eu num vou levantar o cobertor pra ver mas era só um pouco de sono na praça da cidade não sentia esta friagem de hoje eu fiquei até mais ou menos a metade da carga ser colocada pra dentro a noite era só meia fria um silêncio na praça da estação uns ventos distintos bem arrumados passeavam por cima da cidade eu devo ter achado tudo muito bom e bonito sentado nos bancos andando só em alguns pedaços das ruas que vinham dar na praça eu num lembro que hora foi que eu comi o pão com bife mas o que eu queria te dizer era isso: que eu já tive vida boa de gente de respeito que já teve bife de sobra ao invés de achar que tá cometendo um pecado toda vez que tá comendo alguma coisa boa Irma minha irmã eu acho que mais tarde eu vou precisar da sua mão pra me ajudar a morrer irmãzinha preta e fudida que nem eu”.
A massa de névoa se aproximava do descampado; mas já não vinha apenas pela rua e sim também pelo ribeirão, ora rasgada ao meio pelos eucaliptos e bananeiras às margens, ora fazendo-os desaparecer.
04 - o fogo dos homens, óia o trem, óia o trem
Isaía havia acendido uma fogueira nos limites do descampado, junto ao muro da última casa da rua, do lado de quem vinha da praça. Definitivamente, aquela noite não seria muito agradável dentro do abrigo, com aquele Baiano inquieto e assustado daquele jeito. Melhor era tentar dormir cá fora, ainda tinha mais de meio litro de branquinha e, com certeza, viriam companhias lá da fila do Posto, não resistiriam à fogueira. Juca, o fazendeiro, já andava pescoçando lá da beirada do pátio. Afonso, esse com certeza viria bicar do fogo e da sua cachaça. Era até bom que viesse, falaria logo sobre Baiano. É, mas se quisessem ficar até de manhã, alguém ia ter que bancar mais uma garrafinha daquela branquinha danada de boa: “ Zero quilômetro, de primeira orde... aquele pintor de parede é que gosta de falar assim, quando tá bebo e quer debochar das gostosudas que passam perto da gente ”.
Quanto ao companheiro perrengue, não havia mesmo o que fazer naquela noite. Quando Irma precisasse de alguma coisa, ele veria o que fazer, afinal, dali a pouco a fila estaria cheia de senhoras e homens de mais idade, com mais experiência e mais boa vontade nesses casos. De resto, no dia seguinte ele deixaria que Irma cuidasse do doente, ajudando-a no que fosse possível, arrumando com o guarda Afonso para que ele fosse atendido no Posto de Saúde, tentando conseguir os remédios necessários, e principalmente uma alimentação mais nutritiva para Baiano.
Irma a princípio se recusara a acompanhá-lo, enrolara-se num cobertor debaixo da carroceria da Kombi, aos pés de Baiano e com as costas de encontro à cerca de bambu, que fechava a parte traseira da barraca. Além disso, deixara uma abertura na frente, através da qual seguia os movimentos de Isaía.
Tal situação a angustiava. Ela era agarrada pelo sentimento de culpa, pois se abaixasse a lona que ficava na frente do abrigo, fazendo dessa realmente uma cortina protetora, o frio lá dentro diminuiria e daria menos desconforto para Baiano. Mas a visão de Isaía movendo-se destemido na neblina prendia-lhe o olhar, ela recuava nas suas intenções maternais à simples idéia de ficar sem vê-lo, no escuro, a sós com o doente.
Nesses momentos, talvez ela aliviasse a consciência se deduzisse que abaixar a lona de pouco resolveria: o vento frio que se intrometia pela parte de trás, através das frestas do bambu, parecia tão cortante quanto aquele que vinha pela boca do abrigo. Mas ela tinha dificuldade para se postar frente a tais mecanismos, para ela misteriosos, até mesmo irreais. Sabia apenas que tudo seria menos complicado, se Isaía também pudesse perceber que o estado de Baiano era realmente preocupante e viesse para dentro, abaixando a lona e ajudando a aquecer o abrigo com sua presença, para ela magnética.
Assim, fora para perto de Isaía, sonambúlica, desconjuntada, magoada com a confusão de seus desejos. Queria estar descansando e velando por Baiano, mas não no escuro, escurecida a visão de Isaía e do fogo. Por outro lado, apavorava-se com a idéia de que, com a lona alevantada, contribuía para piorar o estado de Baiano. E, subterraneamente a esse dilema, para além da preocupação com Baiano, ela teria gostado de ficar aquecida e entorpecida no abrigo, a ver Isaía, meio que sonhando com um fogo aconchegante e uma noite escura, que não acabariam nunca para eles três, num mundo onde eles não precisariam acordar como bichos no mato, deserdados de caminhos e carinhos, a ver e admirar Isaía, em companhia de Baiano, e sem ter que aguentar as brincadeiras estúpidas do barbudo mendigo.
Porém, antes mesmo de ela se acercar da fogueira, ele se pusera a gracejar a seu respeito com um homem de chapéu, que estava ao seu lado. O homem, um dos muitos que passavam a noite no Posto, certamente tinha sido atraído pelos gritos e exclamações destemperados de Isaía, suas tentativas obstinadas, bêbadas e barulhentas para encontrar gravetos e papel para a fogueira - nas últimas semanas, haviam consumido praticamente todas as cascas das varas de eucalipto, deixadas no terreno. Devido ao nevoeiro, Irma só percebera a presença do homem quando já estava a meio caminho do fogo, e quando quis voltar Isaía já havia gritado.
- Cê chega, cê chega de mansinho, né, Irma? - malicioso, acocorado junto à fogueira, Isaía olhava ora para o homem ora para ela.
- Cê bobo... Vô cuidar de Baiano...
Fazendeiro, fogo, estórias. E se Isaía pedisse para ela dormir com o homem?
Era por isso que ele tinha ficado aborrecido há alguns instantes, quando ela tinha voltado para o abrigo, depois de vagar pelo descampado, a tentar ver, através do nevoeiro, se havia alguma conhecida na fila do Posto. Era bem capaz de Isaía ter imaginado que, naquela hora, ela estivesse atrás do homem, a quem ela nem conhecia. E, por vingança, agora certamente Isaía iria empurrá-la para cima dele, em troca de algum favor ou um dinheirinho para eles.
- Abandonano Baiano, na hora certa... - olhou falsamente admirado para o homem: - Todo Juca dá sorte assim na vida? - a Irma, a sua voz naquele momento pareceu estranhamente doce e magoada; ela viu-lhe também o rosto inclinado para cima, recortado contra as chamas, ele não ria e, por breves segundos, o seu semblante pareceu-se com o fogo, a crepitar mágoa, contrariedade. Ela pensou que devia chamá-lo, irem para o abrigo, junto de Baiano.
- A cachaça ainda não passou? - Juca ironisilenciou o arremedo de diálogo, fingindo contrariedade; abotoado pela jaqueta, coberto pelo chapéu, as mãos firmemente enfiadas nos bolsos, parecendo acopladas às pernas. Falou sem olhar para Isaía, em pé, sobranceiro, enquadrava Irma, divertido, não dava a impressão de avaliá-la, mas apenas de indagar que tal ela se sentiria em ser sua oferenda.
Ela o olhava, fitava sua jaqueta azul, bonita, brilhando de nova, mas admirava-a com um respeito dócil, como se dissesse ao homem que sabia que era sua obrigação admirá-la, como se concordasse em que, além de gostar da jaqueta, era sua obrigação deixar aquilo claro para o homem.
- Chega mais pra perto, Irma - ao mesmo tempo em que fazia o convite, Juca abeirava-se do fogo.
Irma sentou-se num toco, ele permaneceu em pé. Isaía deixara de remexer nas brasas. Um período de silêncio, timidamente interrompido por imprecações e referências ao nevoeiro, a geadas, a roças queimadas pelo frio; um ou outro tiritava, às vezes soprando a névoa ao expelir o ar.
Depois, ele continuou a fazer perguntas a Isaía acerca de sua vida; respostas recheadas de um deboche risonho, meio disfarçado, em função do respeito à distância social existente entre eles; o deboche de Isaía como complemento à hipocrisia de um dono de alguns alqueires de terra, mulherengo e cara-fechada - como Isaía sabia que Juca era - aparentar interesse pela vida de um mendigo. Era sabido que Juca costumava vir para o Posto somente para caçar mulheres que estivessem sozinhas na fila do INPS, caça nova, de preferência,como dizia o guarda Afonso; e já que ele estava ali, rodeando Irma, Isaía deduziu que até o momento a fria madrugada ainda não tinha rendido nada para ele.
Passou depois as perguntas para Irma, e ela respondia de maneira vaga, às vezes rude. A conversa voltou a ocorrer entre os dois homens, mas girando sobre a mulher: brincadeiras falsamente respeitosas, fragmentos de sua história, levá-la para a roça, junto com Baiano, um lugarzinho para cuidar do doente.
Então, outros dois homens vieram do pátio para a fogueira. O guarda do Posto e um senhor de boné, que murmurava palavras de preocupação ao guarda, com relação a recuperar o seu lugar na fila, quando retornassem ao pátio. Mas guarda Afonso, ao se aproximar do fogo, encerrou com impaciência a conversa, expressando em palavras confiantes e definitivas a sua autoridade, acerca das regras e querelas de toda noite:
- Quê isso, seu moço?! O dia em que eu num souber controlar a situação complicada dessa gente, eu vou pra casa, deixo pra outro receber o dinheiro que sai do bolso d’ocês e de todos nós, uai! - o grosso e nítido bigode avançava para o interlocutor, parecia que era dali que saía sua voz forte.
Chegaram, cumprimentaram, esfregando as mãos sobre o fogo. Novo período de silêncio, os cinco rostos imergidos no clarão das chamas, guardados por meditativa e agradecida introspecção, todos se comunicando em silêncio com o fogo e uns com os outros; crep-crep-crep, clareante carícia de fogo e silêncio a crepitar na noite e no pacificado resp----resp----respirar de cada um.
E o trem apitou! Bem-vindo trem de todas as noites! Apitou, aprontou e apontou lá no seu leito, por cima da Rua Santana! Trem travesso, rompendo a mortalha de frio e de gestos arrastados: a noite tomada pelo nevoeiro e o nevoeiro agarrando e moldando as pessoas, obrigando-nos a seguir seus parcos gestos e passos e pensamentos, por mais que se queira colorir e multiplicar as palavras e atos humanos no descampado, não há como, é preciso seguir-lhes a pegada, envolver-se na sua lentidão e nas suas combinações previsíveis; o apito, o ofegar de caldeiras e o ranger de rodas desorganizando a tonalidade sussurrante desse concerto humano no descampado, enfastiado de si mesmo.
Mas, infelizmente, não é hora de perscrutar as mudanças, os arranjos ocorridos à beira do fogo, lá no cerne mesmo das cinco existências, que minutos atrás aparentavam uma resignação satisfeita com sua mudez e sua frialdade, desdenhosamente cientes da apatia de seus instantes, plenamente reconfortadas pelo fogo que aquecia suas carnes cansadas e suas consciências constantemente desafiadas pelo mundo, pelo dia, pelo tempo. Infelizmente não é hora, pois Baiano chama, ele também ouviu.
Ainda que Isaía grite, ágiltorcesticado pescoço, o rosto desenroscado da cisma:
- Óia o trem pra Ponte Nova, Irma! Te levar pra Ponte Nova, mulher!
Ainda que um táxi, entre apressado e buzinibrincando, tenha surgido do nevoeiro, como que pegando carona na aparição do trem, embora vindo de outro lado da cidade. Parou próximo à entrada do Posto, mas do lado de cá da rua - como se num átimo o motorista houvesse percebido a fogueira e reconhecido os participantes e decidido ficar algum tempo por ali; trazia uma senhora e sua filha.
Presto, guarda Afonso atendeu olhar recatado de senhora dona-de-casa que olhava fogueira no nevoeiro enquanto esperava troco. O guarda informou com voz potente que médicos atenderiam e a que horas na manhã seguinte. Fila já muito grande?
- Um muncadinho bem bão... - que ela pegasse a senha com o sobrinho dele, que eventualmente o ajudava, aprendia o serviço.
Ainda que o próprio Juca tenha rompido o cômico triângulo entre ele, Irma e Isaía, acenando para o motorista do táxi, seu chegado. Viesse esquentar-se, Isaía ainda tinha um resto de branquinha da boa.
- E uma pretinha melhor ainda! - um riso forte e alegre, sem malícia de vício.
- E que mal há nisso, que mal há nisso? - Hermínio reentrou no carro, ligou o toca-fitas. Semicalvo, vestia gorro e calçava luvas, demorava-se, porta entreaberta, pernas para fora do carro; demorava-se, valorizava sua ida, a espera por suas palavras e brincadeiras, suas novidades de motorista de táxi. Os outros aceitavam o jogo com bonomia, viam-no alisar as luvas, com um interesse irônico.
Ainda que o novo concerto prometa interessantes harmonias e desarmonias:
- Já parou de fumar maconha, Hermínio? - voz de desafio.
E fugas e contrapontos ágeis:
- Afonso, cê já foi um cara sério, respeitador da vida dos outros! - resposta seca, mas sem querer parecê-lo.
Ainda que tantos eventos voem no vento de um tempo tão breve, apesar disso é preciso ouvir Baiano em sua tenda de mágoas e lembranças; afastar-se discreta, mas firmemente, da roda, caminhar meio de costas, acenando-lhes entre esguio e astuto, resistir ao coro de chamados:
- Agora que eu cheguei, Lázaro, agora que eu cheguei!
- Mais um gole, Lázaro, mais um gole!
Resistir a ouvir por inteiro a melodia clangorosa e imorredoura que sai do toca-fitas, intensa, até hoje inesquecida:
me disseram: ‘vá em frente
nenhuma dor é para sempre’
mas é mentira, é mentira!
é mentira, é mentira, é mentira!
há amores
que são pra toda vida
Ainda que seja tão difícil afastar-se de um canto de verdade assim, é preciso, é preciso, é preciso, é preciso! Porque Baiano chama, ele acordou com o apito e também ouviu o grito de Isaía.
Ele também fora espicaçado, levemente: o trem-som
O trem-de-ferro o trem-de-ferro o trem-de-ferro
A cobra invisível da morte atravessa a noite; mora à noite
A cobra negra te atravessa, te estradeia
Mas o cansado rinque-rinque-tichum do trem te liga ao mundo
Seu som: é colorido, lembrante, lembra-te?
Na beira-linha, para Ponte Nova, teu cais, onde caíste
Lá vai, lá vai o trem... levai Baiano... para longe da serpente da morte
O antigo som vem, o antigo som vai, o sono negro não vem
O-trem-de-ferro-marcha-na-escuridão-parecendo-tudo-azul
*
“e eu caí no mundo quando Tetente mandou saltar de uma vez por todas e eu pulei parecia que eu tinha mesmo caído o vagão já tinha começado a andar e por Deus Irma! foi a mesma coisa desses filmes dessas despedidas que a gente vê na televisão o maquinista na janela forte com seu uniforme a máquina afastando devagar indo embora Tetente me olhava firme não parecia sentir nada mas eu sabia que era mentira por isso eu não senti nada nenhuma raiva Tetente tinha razão mãe tinha razão eu tinha que ir de mim ela não podia cuidar e eu não podia cuidar dela que serventia e que serviço eu ia ter naquela cidadezinha tão miserável tão calorenta e tão gostosa e eu precisava cuidar de mim aprender a viver no mundo quem sabe até um dia voltar pra mim até que não tava sendo muito ruim pior era pra outras famílias que também tinham que vir embora da miséria sem saber pra’té que lugar ir um monte de gente imprestável e atrapalhando a vida dos outros a boa vida dos outros pra mim não tava ruim Tetente tinha me encomendado pro seu irmão tirador de areia cá em Minas no rio de Ponte Nova e o trem do maquinista amigo de Tetente não demorou a chegar eu não tive que esperar até de noite e então foi assim que eu pulei fora do trem de Tetente mesmo contra a minha vontade e fiquei na estação esperando o trem do amigo de Tetente e foi assim que eu pulei fora da minha vida de verdade, da vida de minha mãe, da vida de minha cidade e caí dentro do mundo afora, do mundo de verdade”.
05 - o rio e seu tio, a consciência insiste
Um violento acesso de tosse interrompe suas lembranças. Levanta sôfrega e cansadamente a lona, ouvindo a distância palavras, risadas, música. E vê névoa, vem nevoeiro. Pensa em comer e depois ficar um pouco perto da fogueira, perto deles. Tão triste o sozinho morrer. Com os dedos rachou o pão ao meio, o queijo partiu. Come lentamente, lentos gestos de doente já irmanado com sua doença, anestesiado por ela. Não come tudo, sobrevém uma tontura comum a quem passa muito tempo sem se alimentar. A zonzeira o faz desistir de vez da idéia de se levantar.
Com dificuldade move o corpo, deitando-se sobre o lado direito, os olhos na direção da fogueira, deixa tal como Irma uma abertura na cortina improvisada, para não se sentir tão terrivelmente só. Pensa em insistir com Isaía, mais tarde, sobre aquela sua certeza ou angústia da morte, mas essa atitude lhe parece estranhamente inútil, sem razão de ser; por fim, entende que aquele tipo de compreensão deveria vir naturalmente da parte do companheiro. Mas era tão terrivelmente triste morrer assim, sem testemunhos, somente Irma parecia estar disposta a defrontar-se com o que havia de irreparável e opressivo, no seio daquela noite de aparente camaradagem dos homens, com seus desafios e suas celebrações ao negrume e ao frio.
Ao se mover, sentira como se o ar em volta fosse meio líquido, a sensação de estar lutando contra uma massa de água invisível e que não molhava; o corpo, o corpo parecia ainda estar acima do chão, tal como quando delirara durante a dança desolada de Irma, mas flutuando agora de maneira pesada. A extrema fraqueza levada ao cérebro pelo desarranjo do estômago, a ira dos ácidos a corroerem cada vez mais as paredes enlouquecidas: talvez não lhe turvassem apenas os pensamentos, mas também a acuidade da visão, a nitidez do tato. Tudo por tudo, essa incômoda anestesia dos sentidos assemelhava-se um pouco à longa viagem para Ponte Nova: trens e ônibus, vaga lembrança de cidades, fixara firmemente a imagem de Valadares, o rio, a pedra, a planura, Ipatinga, a quilométrica Usina, resignado sono, a alegria da liberdade precoce domada pela incerteza e pela tristeza, e essas suavizadas por aquela: equilíbrio, anestesia das emoções; enfim, Ponte Nova. A ponte para o mundo, a queda, a errância.
A cidade e o seu rio, e o seu tio:
“Juscelino nunca foi o meu tio de verdade mas pra mim foi era mais moreno que Tetente menos forte e cheio mas quase o mesmo corpo de pouca conversa como o irmão mas mesmo assim mais falador quer dizer pelo menos fazia a gente falar mais perguntava mais ensinava mais deve ser porque era mais novo que Tetente como é que ele era mesmo era mesmo muito mais novo que o irmão? ai essa bambeza na cabeça! mas ele foi bom pra mim até o dia em que foi embora e eu fiquei ele me levou depois pra ver o serviço mas no mesmo dia da minha chegada quando a gente foi da rodoviária pra casa dele eu já tinha visto e gostado muito do lado de cá do rio a gente via os barcos as balsas e era tudo um movimento de indústria mesmo uns tanques de óleo desses grandes de caminhão-tanque todos sujos de preto por fora caminhão e carroça gente gritando um monte barulhento de tambores e latas grandes mas novas brilhantes só dos é tanques é que escorria óleo grosso sujo mas tudo brilhava de manhã tudo parecia com vida brigando de brincadeira com o sol e com um céu azuuul! foi o que eu guardei nossa como a gente lembra de coisas quando vai morrer ou será que isso é tudo passageiro que nem Isaía tá pensano e eu é que tô com coisas demais na cabeça? mas e Irma com aquele jeito de olhar que a gente só olha pra quem tá mesmo condenado e será que é por causa dela que eu tô com essa influença ruim na cabeça essa mulher vive espreitando tristezas coitada mas o serviço pra mim era duro eu ajudava a encher caminhão carroça jipe que vinha comprar areia jogava e jogava a areia pra cima com a pá e um dia um dia de frio eu caí no rio Juscelino tinha ido me mostrar como é que tiravam areia antes das máquinas quando eu trabalhava lá a areia misturada com água saía com vontade de um tubo grosso de ferro que ia até quase o meio do rio acho que era puxada por uma bomba a areia saía fácil sem parar quando eu vi pela primeira vez eu pensei que ela saía com raiva triste desesperada que nem um peixe quando é fisgado nossa! como a gente fica profundo quando vai morrer mas antigamente era um barco quadrado fundo não era um barco próprio para passageiro ele ficava preso no cabo de aço que atravessava o rio de um a lado a outro Juscelino enfiava a pá não sei como eles chamavam era um tipo de concha quadrada acho que de madeira com um cabo comprido ele enfiava no rio e vinha cheio de areia escorrendo água eu empoleirei na beirada do barco não sei se foi prá ver a concha saindo da água ou se só pra pegar no cabo de aço aí eu escorreguei e caí...”.
*
Juscelino correra para o outro lado do barco e saltara rápido dentro d’água. Não fora muito difícil salvá-lo, Juscelino tinha sido garimpeiro, mergulhador; logo depois um barco a motor os recolhera. Ademais, não tinham estado muito longe da margem. Mas Baiano sufocara, inundara-se de terror, um terror mais vivo e áspero até do que a água que lhe entrara pela boca, nariz e ouvidos. Perdera o sentido de localização e de firmeza, com os morros em volta ora desaparecendo ora se levantando, fechando-se sobre ele e o rio, na sua desvairada imaginação as paredes do hospital e a torre da igreja - que no seu dia a dia lá no rio ela não via mas apenas adivinhava, gostava de lembrar-se daquelas construções - se agigantando, ainda mais altas que os morros, parecendo ligar-se ao céu, como se ajudando ou exigindo que ele se fosse para as funduras da água: hospital, igreja, morte, pecado, punição por ele ter ajudado Juscelino a ferir o ventre do rio de maneira tão acintosa e despreocupada, dele roubando areias sem necessidade, somente para se mostrar.
“eu sei Irma que essa minha passagem pelo serviço de areia em Ponte Nova não tá muito bem explicada pr'ocês mas pra mim tá e tá muito bem explicada não tá é pra poder falar mas pelo amor de Deus Irma eu sei que vou morrer eu tenho pressa tá bom tá bom hoje num tem mais barcos e balsas naquele trecho do rio mas já teve os homens de lá chamavam alguma coisa de balsa veio um monte de gente pra ver o afogado naquele tempo não aconteciam tantas coisas no interior quando acontecia todo mundo queria saber como foi quem foi mesmo quem morava longe e tinha ouvido falar dava uma parada perto do sirviço ficava olhando conversando discutindo o que podia ter acontecido e não aconteceu e falavam de outros casos de quem tinha morrido mesmo ali ou noutro lugar numa situação parecida e uns explicavam pros outros de quem eu era filho e de onde eu era e aí passavam a falar da Bahia e de outros baianos e da estrada Rio - Bahia e de fulano que tinha trocado o caminhão por um carro e um lote muito bom e então parou um Opala Opala naquele tempo era carro bom de rico novo uma cor bonita brilhando dele desceu um menino mãe e pai e também uma mocinha de cabelo meio loiro liso caindo estreito até pra baixo do ombro com uma blusa cheia de desenhos mas não eram flores nem riscas eram desses desenhos engraçados modernos que naquele tempo só a gente bem de vida usava era bonito ela com sua blusa ela também ficou me olhando com aquele jeito que todo mundo olhava o afogado assim meio pedindo desculpas por ficar olhando uma coisa diferente mas mesmo assim olhando com um interesse que deixava a gente às vezes agradecido às vezes nervoso mas desse jeito todo mundo olhava não era só ela ah! mas pra que ficar nessas lembranças que não levam a lugar nenhum a menina e sua blusa e seu sorriso eram só ilusão minha ah! se desse pra vomitar vomitar em mim vomitar nisso tudo vomitar nessas lembranças bestas dormir vomitando cagando cagar nessa doença nesse desconforto nessa doença nessa brincadeira sem graça cagar uma cagada sem fim sem fim sair tudo tudo e depois dormir dormir e voar voar dormindo sumir daqui do mundo e naquela semana mesmo Juscelino foi embora discutiu com o dono? por minha causa? mas ele não era meio sócio do negócio? foi acho que pra perto de Guaraciaba não sei se voltou pro garimpo ou pra mexer com areia mesmo mas não foi por minha causa que desentendeu com o sócio pois se eu quisesse podia continuar trabalhando no carregamento de areia com o sócio dele e se eu quisesse eu podia também ter ido com ele pra Guaraciaba mas eu quis ficar acho que já tava quase fazendo dezoito anos tinha uns caras me chamando pra ir pra Belo Horizonte com eles mas antes eu ia aproveitar a época do corte de cana depois eu ia Juscelino não se importou pra que se importar se fosse Tetente não me deixava ficar mas Juscelino conhecia mais o mundo andava por ele tinha ficado mais largado não tinha um trem como Tetente pra ficar dentro dele separado do mundo Juscelino parecia se importar menos com ele mesmo e com os outros acho que ele sabia que eu podia entrar na vida que entrei lá na cidade grande virar miserável mendigo pedidor de comida mas isso pra ele era a mesma coisa que me arrumar na vida montar um negócio com ele no fundo eu acho que ele era meio avoado e no fundo desse caminho eu tô vendo que não precisava ter sido assim pelo menos não precisava ter sido assim tão depressa e eu acho que seu Gonzal deve concordar comigo mesmo ele parecendo ter aquele jeito de Juscelino mas eu preciso ser justo com Juscelino ele insistiu insistiu mesmo comigo pra ir junto com ele só que com um jeito que deixava sempre a escolha pra gente e o que eu acho é que eu num tava preparado de verdade pra escolher entre aquele mundão de Belo Horizonte e a vidinha mansa lá em Guaraciaba vidinha boa mas sem emprego bom sem estudo sem outros conhecimentos e novidades e naquela semana mesmo eu tomei minha primeira cerveja sozinho deu uma vontade de comemorar comemorar não sei o quê se era minha liberdade se era ter largado o serviço depois de quase três anos se a lembrança do meu afogamento com o interesse dos outros por mim com a aparição da loirinha me olhando não não era por ela devo ter tomado coragem pra tomar a minha primeira cerveja sozinho porque o pessoal do depósito de gás com quem ia pra Belo Horizonte tava demorando deviam tá esperando o vale e eu fiquei então sozinho morando com um dos empregados do depósito de gás num quarto numa rua perto da saída aqui pra Viçosa lembro que naquele sábado tinha parado no portão do depósito lá no Triângulo e conversado com ele e combinado de mais tarde a gente já ir na rodoviária perguntar se tinha aumentado o preço da passagem pra Belo Horizonte na semana em que eu caí no rio de Ponte Nova eu caí de novo e agora sem volta nas voltas que o mundo dá ”.
*
Baiano a andar, a gostar de viver em Ponte Nova, sob uma tarde que apesar do inverno se mostrava viva.
Baiano a querer dormir e morrer, cá em Viçosa, a buscar um sono angustiadamente fugitivo, a dobrar ao meio o corpo tomado pela dor de estômago, mas na verdade cada vez mais uma dor que já não tem como incomodar mais, quer dizer, que já não se impõe mais apenas como dor e desconforto, pois ele já é todo sofrimento e agonia, dor que já não é sentida de maneira tão violenta ou nítida, exatamente por já não encontrar mais obstáculos, por não encontrar em Baiano uma ínfima parte sequer que grite, que seja capaz de se opor, de desejar o não-sofrimento, capaz de sonhar o cessar do desconforto.
A dor então se assenhoreando de todo o seu existir na noite, ele apenas querendo se entregar, sem encantamento se encontrar na agonia, fazer dela o seu lastro último, furioso e desejado esquecimento de tudo o mais...
Mas, fazendo por não imergir nessa dor, ou por percebê-la como exagerada e traiçoeira, há uma resistência da consciência de Baiano, que despertou para a singularidade daquela noite: não é possível que a tarefa, de testemunhar lúcida e condignamente o seu próprio morrer, seja assim frustrada ou desorientada ou desviada por algo tão previsível e conhecido e humilhante como a dor física.
É preciso que a consciência liberte-se do hábito de se agarrar a qualquer aparição, agora é preciso filtrar, escolher, resistir à tentação de se afundar no poço sem fim da dor; a consciência intui que isso seria o mais fácil, isso a livraria de estar atenta e expectante para a singularidade do morrer, isso a desobrigaria de vez de qualquer tarefa ou caminhada, o mergulho inconsciente na dor seria a própria e costumeira antecipação da morte; mas uma morte que não seria a sua, que lhe viria de fora, como um visitante a quem ela abrisse a porta e fosse depois se refugiar num aposento qualquer, ao invés de ir ao seu encontro na solitária tenda do desvelamento e da espera, exposta tanto a brisas quanto a vendavais.
Então, ainda restando uma fresta para a consciência-memória de Baiano - mesmo que uma parte de Baiano não o queira - por onde entram solícitas as imagens que mais se gravaram, os momentos que há muito tempo, em outros movimentos e harmonias, e em outras etapas do jogo, haviam remetido a extensas e confiantes possibilidades para Baiano. Mesmo que, ao final, ao invés de proporcionarem sonoro e colorido fechamento, tenham se mostrado como nada mais que uma brincadeira boba, cansativa, acordes desnecessários, absurdamente acrescentados a uma sinfonia que sempre se mostrara incompreensível, ao longo dos anos desprovida de aparos e amparos, polimento e centro.
Era essa a luta que se travava no âmbito daquela consciência: para testemunhar o seu findar, para alimentar a sua espera, ela tinha necessidade de rememorar, mas, nesse seu impulso rumo à árvore da memória, o que ela colhia era na sua maior parte tão amargo, tão sem doce, às vezes até mesmo frutos apodrecidos. Por isso, o Baiano cá da tenda a querer apenas dormir sua agonia, apenas no escuro voar, da desolada árvore de sua existência para o esquecimento final.
Mas não pode ficar e morrer em paz cá na tenda, pois é ainda uma vez mais retido pelas imagens, pela necessidade e vontade de sua consciência em se manter ativa, lúcida.
E então Baiano, cá na tenda, a se lembrar de quando andava a viver, a andar vivaz pelas ruas de Ponte Nova, ao encontro de algo que deveria, e poderia, ser como um movimento de harmonia à sinfonia de seu existir.
Mas que, cá na tenda do seu morrer, agora ele entende ter sido apenas mais um ruído monótono, mais uma música sem graça, executada de maneira calhorda e irresponsável, por pretensos regentes e instrumentistas, tolos e patifes, os inatingíveis e canalhas donos do dinheiro, talvez até mesmo necessários ao obscuro e Misterioso compositor de todas as coisas e existências – Deus sabe o que faz, Deus escreve certo por linhas tortas, etc.
Tá, tudo bem, mas o poderoso Deus Regente vai um dia permitir e ofertar a redenção e a vingança, para os da planetária e andrajosa família de Baiano?
Mas, pausa: breve interrupção para um sereno retrato antigo: sábado de poético e típico crepúsculo de inverno azul, nos céus da Zona da Mata mineira. Véspera de noidescanso: calmos os gestos e semblantes dos empregados do Depósito de gás. Como se eles é que estivessem dando permissão ao tempo para passar: ali parados, à espera de pagamento, sentados nas calçadas ou encostados e fundidos na muda inquirição das paredes, parecendo trazer no rosto a absurda certeza de que o dia, todo ele, existira somente para eles, para sua anônima e árdua faina.
E, agora, ordenada a retirada, e apenas à espera do ordenado, portavam-se como risonhos participantes de um jogo antigo e que somente eles conheceriam: sorrisos não sólidos dirigidos uns aos outros, esguios esboços do olhar cumprimentando a tarde ou a si mesmos, morna indolência mesclada de nostalgia, quase melancolia, silenciosos, trespassados pelo mudo crepúsculo, não buscando aprisioná-lo em suas memórias, mas sabendo, meio maliciosos meio apreensivos, tornarem-se parte de sua sombria fluidez.
O céu corrompera suas mulclarinítidas formações de azul e branco por solenes regiões alvinegras, que ora condensavam-se ora distendiam-se: na verdade um enganoso jogo de contração e distensão, percebido que com o passar dos minutos irremediavelmente predominava a tonalidade não negra, não totalmente preta, mas de um negror grávido de ex-azul. O antigo azul parecia entranhar-se nas tintas mais negras do céu, como se fosse uma morte ao contrário, ou a vida de contrários: formas de mães-nuvens volumosas, rechonchudas, de um negro cada vez mais pleno e vivaz, carregando em seu bojo e protegendo em seu útero
infantil
perecível
inapreensível
um já jato de ex-azul
mas que, embalado e protegido no ventre do negror, atravessaria os tempos e cavernas da noite e reviveria na manhã seguinte.