
suba, junto com
o intrépido e desesperado U.,
até as órbitas da
fascinante e transcendente Dala
01 - em busca do caroço do cosmos
percorre a sua incansável rota
na infinita esfera universal
um planeta inteiriço, áspero, roncador, terroso. por bilênios, o seu denso e inconcebível coração, de ferro e lava, zune desvairado, qual desamparado trem de metal, quando na grande e noturna estrada campal. mas por fora, à distância, parece zunir macio, alisado de azul, abraçado pelo ainda mais vasto campo sideral: um globo entre tantos globos, na sua vasta e quase eterna solidão, ladeado tão somente pelo frioroso silêncio martial, amostra da impassível e gélida inércia do Cosmos, e pela crepitação venusial, amostra da ainda flamejante trajetória da matéria.
Uma história sem fim a sua, uma história sem sonhos, uma história concreta e de terra
fadada à solitária dor
de se repetir
e se repetir
e se repetir?
Terra vagante, ensimesmante, mesmo antes do primeiro lunetoscópio. Tudo indica ela nunca estar no mesmo lugar, ela só gira em torno de si e do solar senhor das luzes. Mas o solar senhor das luzes e ela navegam, interminamente, sob a atração de uma atração ainda maior, galaxial.
E há tanto tempo tantos têm sido os encontros mudos com os pedaços de vazio, cápsulas virginíssimas de nada jorradas de arroio sem nascente e sem foz e sem fim.
Nunca, nunca no mesmo lugar: vagam todos, uns bilhões deles, expulsos em direção à, ao... Zunem raivosos, zunem imensos silêncios, velados por uma aparentemente inútil harmonia celestial.
Talvez se devesse lembrar que não é eterna a terna Terra, que ela teve um começo, que um dia seus pedaços se ajuntaram. Big Bang! Faça-se a Luz! Mas esse tempo do espaço, do Genesis e dos astros não me concerne e nem pertence a U. Eu aqui tenho
mente admirada
distante de astronomias
tão confusas
e astrologias e religiões tão longínquas, e U., U. está fazendo vinte e sete anos. Seria trágica e burra toda insistência em lembrar-lhe, trágico na noite dos seus anos, a finitude sua, que o fará suar a alma dentro em pouco. Pois este globo azul não estará a nos carregar daqui a alguns bilhões de anos, quando chegar o momento de seu escarcéu doloroso, de seu bum! E U. o sabe.
Para U., então, é uma história sem começo e sem fim, e assustadora, a deste corpo girante. E é também uma história que somente importa aqui e agora, no fugaz espaço dos seus vinte e sete anos. Espaço insignificante para o globo, mas para U. espaço espantoso, inexplicado, total.
O que ele quer, nesta noite, é, nada mais, nada menos, do que imaginar, respirar, beber, vivenciar o exato minuto e a exata posição do nosso planeta e de todos os trilhares de corpos do Cosmos, na conjunção de exatos vinte e sete anos atrás, quando U. nasceu, quando o Tudo começou para ele. Delirante e louca ambição, pois não?
*
Cá, do lado de fora da pensão, na qual estamos, eu e Lázaro o acompanharemos nesta espantosa noite e, após, ajudá-lo-emos a redigir o escrito de sua fascinante trajetória. Com a presença da poderosa pena de Lázaro, este canto a três vozes jorrará muito mais pulsante no meio do Ser e dos entes. Além do que, tornará menos longa a vigília; durante a noite, conversaremos muito, fumaremos um que outro baseado e talvez ate bebamos algo nesta friálgida noite.
Aliás, fiquei surpreso de que ele tenha largado seus outros escritos para se dedicar à construção desta delirante narrativa, pois sabido é que Lázaro segue o que a Voz lhe diz, qual seja, assuntos mais terrenos, mundanos, gritantes, e menos abissais, místicos e transcendentes.
02 - uma pedra queda o pedreiro
Uma pedra fez cair o homem.
A pedra, pequena, do tamanho de um ovo, até então imóvel e esquecida, repousando sobre o leito de asfalto, foi projetada de encontro à sua cabeça, devido ao atrito com o pneu de um ônibus, derrubando o homem negro na esquina da Espírito Santo com a Guaicurus.
Não se sabe se o silêncio, que se fez no local, começou antes ou no instante da queda. Também ninguém se indagou ou indagou às coisas sobre o instante, apenas U., que ao captá-lo em toda sua duração, tomou tristeza. Mas tristeza leve, quase terna, era nele um segundo sentimento; um segundo de tristeza nos segundos de silêncio. Dessa tristeza não te falo mais. Sentimento secundário, passageiro talvez subterrâneo.
Você repare agora num guarda, juveníssimo, do outro lado da Espírito Santo. Vinha descendo ao longo da calçada do refeitório da Faculdade, folheando um livro. “Um bêbado?” interrompensou, tropeçou, e continuou a andar, mas mais devagar, fechando o livro e olhando de relance para o outro lado, onde pessoas não haviam ainda se aglomerado. Só o corpo do homem negro se divisava, através dos ônibus e automóveis, que ora se desviavam ora prosseguiam indecisos. A indecisão do guarda se deveu a esses carros que passavam e, parece, porque esperava que alguém, um guarda de trânsito talvez, parasse junto ao homem caído; mas ele foi-se.
E no instante mesmo em que iniciava a travessia, erguendo o braço direito como advertência aos motoristas, percebeu o jovem vindo a passo regular pela Guaicurus, já quase chegando onde estava o corpo; uma confusa percepção de que U. jovem olhava alternadamente para o homem caído e para ele, guarda.
Ele entregou o livro e o quepe ao pedreiro que olhava de uma certa distância, mas ainda assim o mais próximo. O pedreiro, após passar afoitamente sua sacola, juntamente com o livro e o quepe, para um camelô, que permanecia sentado durante toda a agitação, foi prestar ajuda ao guarda e ao homem negro, carregando o último pelos pés.
Após colocarem-no na calçada, o policial liberou o trânsito com movimentos sucessivos e horizontais do braço esquerdo. Novamente uma situação de indecisão, ela se fará mais explícita se você puder imaginar o guarda fitando o pedreiro, indagando e censurando ao mesmo tempo. Antes que os dois dirigissem interrogativo olhar, para o ônibus que esperava lá na frente, Carandaí de fato recebeu o olhar do guarda, e retribuiu com uma expressão de desafio, porém desafio calmo, como que se isentando; mas de qualquer forma dava a impressão de esperar uma repreensão do guarda: “Se eu não estivesse passando por aqui, como é que ficava, merda?!”. Não saíram da boca do juveníssimo tais palavras de censura, mas outras:
- O senhor acha que precisa de hospital? Foi aquele ônibus?
- Foi - respondeu Carandaí, pensando confusamente que combinava com a clara juventude do guarda insinuar a censura sem exprimi-la, sem espremê-lo.
Mais à frente, a traseira do ônibus, como uma enorme testa de vidro, recebia silente os olhares dos dois homens. O guarda jovem desviou, segundos antes de Carandaí, o olhar para um guarda de trânsito, bigodudo, avantajado. O guarda jovem e Carandaí se entreolharam. Seus olhares se tocaram exatamente no momento em que o bigodudo entrava pela porta do ônibus, com uma das mãos na cabeça, a segurar o quepe.
Como um sorriso cínico, o sol fugitivo deixa que alguns raios inconsistentes passeiem pela cabine do ônibus e toquem o rosto e as mãos do motorista interditado. Após um dia inteiro, esvaziado e silente, comandando, do alto de sua nave enfurecida, investidas insípidas e recorrentes por ruas eternamente barulhentas, o motorista está afundado, dissolvido em sua poltrona, como um deus
destronado, demitido de si
refletido em cansaço
e desesperança; duplamente logrado, pela vida e pelo dia. Interditado porque interditara o destino do homem negro. Ele diz ao guarda bigodudo:
- Não é Antônio, é Antunes.
- E esta empresa fica no Floresta, não é?
Fornece-se e toma-se informações.
- O senhor já perguntou pras testemunhas? Todo mundo deve ter visto que foi ele... Ele quase entrou na frente do ônibus, só parou em cima, assustou mas não deu tempo... – o motorista fala ao guarda bigodudo.
Mas o motorista, exasperado, subitamente se dá conta de que, apesar do guarda, importa pouco naquele momento saber quem interditara quem. Importava muito era saber “quem vai socorrer o homem?” “ninguém vai providenciar hospital?”: vozes, buzinas, confabulações ameaçadoras do lado de fora do ônibus.
Lá atrás, Carandaí, absorto, uma mão na cintura, não demonstrava que seus pensamentos traduziam a mesma preocupação da senhora e do jovem que lhe faziam indagações desordenadas. Seu olhar, antes de retornar ao policial de bigodes e ao motorista, que agora vinham lá do ônibus, pousara preocupado no homem caído, que abria e fechava os olhos, gemendo fracamente (ouça: alguns transeuntes, que ali param por alguns instantes, comentam que o homem caído é pedreiro, a mesma profissão de alguns deles, inclusive, como já foi dito, a de Carandaí).
- Mas não se pode... qualquer carro... - vago, Carandaí captava as palavras do jovem, enquanto observava o guarda gordo manipular o orelhão.
Silêncio, entre eles. O guarda de bigodes disca. Os carros passam respeitosamente, como que fazendo menos barulho. O guarda jovem fita o homem caído.
- Mas não se pode parar...
O camelô finalmente se levanta, vem lento. O motorista se junta novamente a eles, sem, contudo, interromper o silêncio.
- Mas será que não se pode parar um carro qualquer, qualquer guarda tem ou não tem autoridade para isso?
Finalmente, todos os olhares se voltaram para o jovem que gesticulava impaciente, como se somente agora admitissem suas hesitantes tentativas de romper o silêncio, Carandaí parecendo finalmente dar-se conta da realidade de sua presença. O motorista olhava admirado o jovem, como se repetisse “é isso, é isso”. A senhora falou:
- Seu guarda, para um carro! Até chegar a ambulância sabe-se lá o que pode acontecer...
- Toma o controle, rapaz! O seu companheiro parece maluco por regulamento, tava lá me atazanando... Vamo gente, antes que complica a vida do moço aí e a minha! - o motorista atropelador atropelava as palavras, olhando de relance para o guarda gordo, que telefonava para o hospital, e olhando para o jovem, como que pedindo ajuda. O guarda jovem:
- Avisem ao colega para...
Antes de concluída a frase, o motorista preparava-se para atravessar a rua em direção ao orelhão. O guarda de bigodes, ao perceber os movimentos do colega, desligara abrupto o telefone. Fitaram-se. O motorista estacou, mas não fez meia-volver: “vou ver, vou ver no que dá”. Continuou parado, um pé na rua outro na calçada, olhando o guarda bigodudo que iniciava resoluto, bronco, a travessia.
U. jovem e a senhora colocaram-se de lado, enquanto o camelô e o guarda carregavam o homem negro para dentro do carro recrutado. U. notou que o homem ainda abria e fechava os olhos, dirigindo-os, insistentemente, para o sol que se punha, longe. Um sol não mais cínico, mas demasiadamente longe para seus olhos. Ou somente agora, ao fim de uma vida, realmente próximo de seus olhos: um santo óleo, seu santuário final?
03 - assunção sideral
Belorizonte, nalguma pensão nas imediações do Maletta.
Após toda a trágica azáfama do acidente, U. se foi. Mas não ao encontro de seus amigos Lázaro e Ilídio. O acidente e a morte do negro haviam-no impressionado por demais da conta. Rodapiou um pouco pelas ruas do centro de BH e foi para a pensão, tentar escrever algo acerca do fato.
Mas não. Dormiu.
Perto das dez horas da noite, U. ainda deitado, saindo repentinamente de um sonho. E, em seu sonolento despertar, o planeta confunde-se com uma carreta:
“Vai te levando embora, te levando para nenhum mesmo lugar. Vai roncando, obstinada como um caminhão pesado na noite”.
Ele não se pergunta o porquê, mas ainda sonhativo não concebe que uma massa tão gigantesca, manipuladora de tantas forças, mares marés, vulcões, cordilheiras, amiga e filha de tantos deuses, que uma massa assim tão potente possa forjar em silêncio a sua ida. Subitamente, há uma preguiçosa suspeita de que algo, como uma confusa comunhão, se passa no momento do seu vago e magro acordar.
Mas o que ele faz é uma invocação entre interrogativa e zombeteira:
“Grita, Terra! Chama-me na obscura e mística noite dos meus anos! Leva-me daqui?!”
Ri fracamente da sua fantasia e auto-ironia. E no entanto...
Murmura quimeras, mágicas imagens geram-se-lhe na mente: ser conduzido até a órbita do planeta, dormir o seu aniversário na ampla altitude, alojar-se lá, no estranho, tocar, fazer parte do rico rio real, que era interditado aos homens pelo céu, por aquela mesma atmosfera benigna e azulada que os protegia do vácuo.
Mas ele aceitaria, se o convite espantoso-espetacular lhe fosse feito: a Terra chamá-lo, guindá-lo até o seu verdadeiro seio, amamatá-lo com o poderoso virginal, espaço, alimento aniquilante. E, no entanto, ela protegê-lo do frio espanto infindo na vastidão sideral, para ele poder retornar ao frio medo primeiro, entranhável – aquele puro espanto primevo como deve ser nos primeiros segundos de vida do recém-nascido. Ela veloz fortitã, ele aconchegado, levado, enfim reencontrando presenciando um antigo encontro, o dos astros, vácuos, luzes e demais corpos celestes na mesma conjunção de vinte e sete anos atrás, ele tornando-se de fato encontros.
E, quem sabe, ele também aquecê-la numa que fosse ínfima parte do seu corpo pedinte, solitário, atrever-se a falar-lhe, dizer que a ouve, que a sente, que a louva, que gostaria de retribuir-lhe, tal como a uma mulher e a uma deusa. Dizer, ah, se além de estar junto dela pudesse falar a sua língua, para dizer o que significava para ele estar junto dela.
Ele se sentia já acordado, mas ainda enlevado. A quase certeza de que algo, de fato, se passaria. Talvez fosse possível, talvez ele e ela precisassem que fosse possível. Ele U. tentaria.
Deitado na parte de cima do beliche, fitava a laje do teto. Tinha a impressão de ouvir o rumor dos átomos fluindo ao longo da massa de cimento e pedras, como se o teto do quarto insinuasse uma secreta e muda passagem rumo às noturnas alturas. U., imóvel, o imóvel captava. E era como um chamado do longe, ainda fraco...
Estupendo! O momento! Um desses, de duração ao mesmo tempo tempestuosa e levitante. Antes que as imagens, ou as visões, ou as impressões, ou a visão das impressões, escapassem expulsas pelo indesejável retorno da lucidez. Mas, não. Sorriu. Ele se sentia já filtrado, parte, indo
e a ave da alma
se alçando
leve, leve
às naves, nuvens e neves
do doce denso negrume
Aceitava-o, queria acolhê-lo!
Sentou-se na cama, as pernas estendidas: “Ah, tarde, dia, mundo! Nós, noite, nós da noite! Os cretinos deste mundo não me pegarão! Irei para o Infinito!”.
A inquietação provocada pela possibilidade de desaparecimento do delírio, magia, enlevo, ou fosse lá o que fosse, já não existia mais, mas fora substituída pela angústia do indefinido, o temor concreto de algo que o levaria não se sabia aonde. Ainda sentado, sentiu-se, imaginou-se como o frio vento de julho, dançarino desabrigado derrapando nos descoloridos desvãos da cidade. Auscultou-se em meio à penumbra: respiração, palpeitação, quase derelição.
Lá fora, o vento lerápido lambendo em desespero as árvores em frente à janela, o vento agarrado pelo negrume sintético da noite, agoniando em frente à pensão, assustado por ter sido aprisionado na combalida cidade, ao lado de criaturas que pareciam mortos-vivos, indagando demoradamente “puuurqueeêeueu? puuurqueeêeueu?” o vento cariciaçoitando, assoviando às folhas às arvores aos parcos transeuntes, e depois as lufadas indo-se, umas virando em direção à rua São Paulo, outras subindo a Timbiras sonhando a fuga, clamando o campo, as planuras de Andrequicé, as capoeiras emboscadas à beira das estradinhas no coração das minas e dos gerais - a estrada de São Miguel, a terra prometida de Canaã levando ao ninho noturno das arapongas, às cordilheiras do Divino e à divisa com o Espírito Santo, e o vento lá nas cristas montanhosas finalmente absorvendo a vastidão, adivinhando-a, indagando ao céu escuro:
e ali atrás das arapongas
escondido, estendido, o mar?
uivando aos pés dos picos
sombrios, desolados
fiéis dedos de deus
em meio ao negrume?
o mar escondido, aninhado
fervedouro de anátemas
furiosos mas fecundos:
de onde tanto emana
e onde tudo se irmana:
a doce força primeira
o desejado esquecimento
o brincantante suicídio
naufrágio ágil
umigélida comunhão?
Na noite, U. imagina que o vento sonha cavalgar o bravio e espumante corcel do mar, o vento a falar ao mar de sua longa e tresloucada trajetória “lá de minas eu vim, té aqui, té aqui...o mesmo frio de aqui, sabe, seu mar...” e o mar a perguntar ao vento acerca das montanhas escuras e mudas – do puro e preto ouro com seus despenhadeiros abandonados e bosques cerrados, minerais fitando ao longe fracas luzes: reflexos aconchegados e ancestrais de cidadezinhas penduradas nas encostas, a ouvirem o lamento do Rio das Velhas Minas, Sabará, Saramenha, Mariana, Congonhas, casas e casarões a contemplarem os paredões e os prados. O sonho de U., Saramenha.
*
O sonho, o vento.
Nas suas andanças, o frio do vento adentrara no espaço oferecido pela janela aberta do quarto de pensão. Tocara U. corpo, o corpo em posição fetal sobre o beliche, feto sob teto em busca da noite primeira, do segundo primeiro. A invasão do vento acordara-o duas ou três vezes, durante as horas em que estivera dormindo, após o acidente com o negro. Mas não agredira U. durante o sonho; ao contrário, doce calvário.
O cheiro de combustão e os roncos (bastante fortes) dos caminhões e ônibus, que ainda trafegavam pela São Paulo, subiram com o vento, até o seu corpo adormecido e narinas. O ruído dos motores e o cheiro de diesel provavelmente colaboraram na aparição do cenário e nas lembranças do sonho: as viagens. No primeiro bloco do sonho, predominara a sensação de um incessante mover-se de caminhão numa estrada asfaltada.
As imagens certamente remeteriam a uma daquelas viagens na estrada de Ouro Preto a Belo Horizonte, quando, no caminhão de seu pai, transportavam carga de Saramenha a São Paulo.
Saíam de São Tomé das Letras na noite anterior, chegavam à Usina, local frio e enfumaçado, às oito horas e só retomavam a viagem à tardinha. Ele aguardava do lado de fora, no terreno junto à rodovia e nas barracas, dentro da Usina somente podiam entrar motoristas e funcionários, adultos enfim.
Quase doze horas espreitando e espreitando-se, jogando-se no (e jogando com o) tempo inútil amontoado à sua volta, ele fazendo por ignorar a profusão de montanhas úmidas e verdes que envolviam-no, envolviam a Usina, com seus fornos e máquinas zunindo inacessíveis (para ele brilhantes e futuristas), jogando com o sem número de caminhões e motoristas que iam e vinham; ele tendo que dividir sua atenção em observar máquinas, caminhões e pessoas de gestos apressados ou mecânicos, e em meditar sobre
o encanto e o espanto
com que as coisas
envolviam-te em enlevos
Compreender os espaços inabitados entre elas, montanhas e espaços inviolados sucedendo-se uns aos outros em olímpico mutismo, ele, ainda que não soubesse, achando-se extenuado por aquela mistura de humano e de divino, de banal e de extraordinário, que o agarrava de todos os lados. Impaciência, Impaciência.
E, vez por outra, também uma fome cômica, quando ele e seu pai ainda não sabiam de um restaurante nas proximidades da Usina, e eles tinham que se contentar com biscoitos, queijos e sanduíches surgidos melancólicos nas barracas.
De bom grado, então, ao entardecer ele se reacomodava na cabine, o desejo interrompido, mas conservado e talvez acrescido, de ganhar o asfalto como uma ave qualquer ganhava o espaço: percorrer, percorrer, em silêncio percorrer a terra-estrada-mundo, sabendo que o próximo ponto de descarga, e de espera, ainda estava longe, ainda estava depois da noite que se avizinhava. Na última encosta, de onde ainda se via a Usina, ele se voltava e ainda via a Usina. Apesar da demora, leve tristeza de despedida, mitigada pela quase certeza de que um dia voltariam. Já escurecendo, ele se deitava no chão da cabine: um pouco de repousono.
Mas o desconforto e o cansaço ansiosos, que haviam se acumulado durante o tempo de espera fora da siderúrgica, voltavam, em menor grau, era verdade, após as primeiras dezenas de quilômetros de subidas, descidas e curvas; ele sobressaltava-se, principalmente, com as curvas que pareciam puxar o caminhão agora pesado para fora da estrada, para os despenhadeiros que ladeavam a rodovia nas proximidades de Ouro Preto e Itabirito.
Tudo se tornava, então, um misto de cansaço, medo e felicidade: a cadência gostosa e com um quê de poderosa do mercedinha 1113 ocupando a estrada, o ronco acolhedor do motor que também aquecia o chão da cabine, a pergunta “pai, onde vamos jantar?”, formulada após algumas dúvidas sobre dormir ou não dormir, afinal dormir depois de um “vamo ver se a gente agüenta até o Água Limpa” (que ainda estava longe), adivinhando na noite as passagens velozes dos outros caminhões, ora vindo em sentido contrário, ora sendo arduamente ultrapassados pelo 1113, ora corajosamente ultrapassando o caminhão deles, roncando, bufando.
Sua consciência ingênua e sonhadora via algo como um gesto de solidariedade nesses encontros ruidosos sob o negrume frio, sua consciência frágil e perplexa via neles gestos de abandono e mútua indiferença; encontros e desencontros nebulosos, necessários.
04 - afasta-te, lucidez!
Resgate do já ido e antecipação do porvir: estradas, estrelas, deslocamentos, curvas invisíveis a sugar. Em seu estado de semidelírio, U. ainda consegue registrar uma espécie de última coincidência: lembra-se de que, ao se deitar na cabine do caminhão do pai, ficava a cismar se rodavam ou no mesmo sentido do giro do planeta. De toda forma, a revivescência das imagens no sonho contribuíra em definitivo para a abertura da passagem rumo ao... a...
Também a visita do vento antes do sonho: com sua comovente errância, o dançarino desabrigado atenuara seus temores e tremores; ao aspirá-lo U. tornara-se mais inspirado para aceitar a tarefa de viajante sideral, exposto, a amparar-se tão-somente nas curvas de vácuo, infinitas e infinitesimais, que o aspirariam lá em cima. O vento e as brumosas paisagens de antanho, revistas através do sonho, agiram ao mesmo tempo como elemento de ligação e de separação, como passaporte para a inusitada viagem e como despedida, uma espécie de rompimento nostálgico com o seu existir até aquela noite dos vinte e sete.
*
Quase não se movera, apenas apoiara a cabeça e as costas à parede, colocando o travesseiro sobre as coxas e junto ao ventre. A fronte ameaça suar, só consegue murmurar:
“Será que não existe uma palavra mais forte para espanto, fascinação, maravilha?”.
Já nem de longe brinca, cético, com a sensação.
Antes, tenso, intenta também tensioná-la, sente que se tocam, mas, dentro, trêmulo, teme que não, que não a mantenha, viva; sabe que só a si cabe embalá-la, inflá-la, sabe que, como de outras vezes, este é momento frágil, palpitações inefáveis mas traidoras, que se esvaem evanescem ao nosso menor falso ir. E o instante ali presente, assim tão trajado, que o elegeu para tão encontro, deve exigir, para se viver sua filtrada filigranada riqueza, que ele saiba
colher frutos impossíveis
para, etéreo e incessante, ofertá-las ao fluir do momento, a si mesmo, à longa noite, ao encontro; ele sente que é dele que deve continuamente jorrar a ausência de tempo e de limite espacial, que é dele que deve, num raro rasgo da imaginação, jorrar o arrebatado gêiser da Palavra, que os torne a todos uma só navigagem, todos
o sol vibrátil-cortante, a dança serena da lua
as madrugadas enevoadas e divertidas
de bebidas, pós, putas e baralhos
tristes poetas filósofos
espelhando seus espantos
o gosto antigo da saudade
a dor que rebenta à noite
o pássaro esvoaçante na saltitante manhã
o celestial e matinal cheiro de estradas
abertas e vermelhas com terras de tantos solos
Uma navigagem que leve todos, o fluir, o momento, o encontro, ele, todos a se lançarem
nas alamedas labaredas e labirintos do infinito
E ele teme, treme de não podê-lo, não poder cumprir o pacto, não poder dar-se a ela, dá-la a ele, dá-la, dala, Dala. Sim, sim, esse parece ser o nome há pouco murmurado pela Voz aos seus ouvidos.
Mas afastemo-nos, basta! Sem incômodos testemunhos, sem pegajosas e minuciosas dissecações da consciência de U.. Eu e Lázaro apenas espreitar, da rua espreitar e tentar escutar, sob as árvores.
Que nem U. seja testemunha, que o próprio se afaste de si mesmo,
Confiar, acreditar que ele não irá se perder em inúteis e, no momento, perigosas investigações.
Parece que, subterraneamente, ele principiou a buscar as causas que o levaram até ali, iniciando uma débil associação mental, que certamente poderia fazê-lo recuar do delírio e da navigagem. Mas crer que ele não obedecerá a esse tirânico e insosso chamado da razão,neste momento de festa do fantástico!
Afastemo-nos. Fora do quarto, fora do encontro. Expectante esperar da consumação, o tênue encontro, U. e Terra têm encontro, U. e Terra cantam, canto de louvor e dor. Dala, vibrante magia à espera, para um pacificado deitar-se do corpo e do coração de U.?
05 - um poeta-amante para dala
U.
(sugado ao céu, varando indômito o frio cortinado de nuvens e partículas, mas, ao chegar aos seios e órbitas de Dala-Terra, flutuando voltado para o Sol, numa zona mista de frios e calores, de claridades e negrumes)
e os astros e cometas
cintilam e aplaudem
por haver assim te galgado
trago-te eu, aceito e consigo consubstanciar o pacto. quero-te, em teu quente leito. mas também quero uma amostra do espanto, à porta do útero, no momento em que nasci, quando me deparei com o Real, eu olhaberto para tudo e lugar nenhum, suspenso no espaço. quanto tempo falta para o momento de repetir-se a conjunção astral de vinte e sete anos atrás, Dala? canta a cantiga, amiga antiga.
Dala
(o olhar polar brilhante, polindo-se na presença do visitante, entreabrindo os altos e túmidos seios e esvoaçando as nuvens-cabelos, fazendo-os ondular do lado do sol com um só sorriso sedutor, qual também sol)
o espanto, senhor dos homens
aturde-vos a todo instante
como sinas e sinos a dobrar
mas parece-me que o parto e o nascimento em vossa raça não se realizam apenas sob a sina do absurdo e sob o signo do espanto obscuro. quero crer que os sinos que dobram lá embaixo, nestas grávidas ocasiões, também entoem louvores às cores e luzes, também signifiquem um espanto ridente, um espanto feito nem sempre de maravilhas - já que me parece ser o teu caso, neste nosso primeiro encontro face a face, corpo com corpo. mas ao menos de aceitação da inevitável e matutina abertura perante o Real, que se descortina ao primeiro olhar no primeiro segundo de vida do recém-nascido. então, para quê
à viva alegria
preferir essa obscura
tortura de indagar e lamentar
como estrela decaída
num cosmos sem
magos, anjos e amigos?
U.
(ainda encantado, mas ainda também altivo, mirando o seu próprio alvo)
quero, necessito reencontrar, re-viver o combate, o Início do meu Tudo. e caso eu tenha que me amamatar nele, que seja! terei feito por merecer tão esperado repouso.
Dala
(prosseguindo na persuasão, para afagar a ânsia do precipitado aríete humano)
para quê? não te quero apenas morte entrevista, não nos quero meramente como mútuo canto de frialdade e silêncio, durante nossa breve jornada nestes infindos campos desde sempre sobre nada suportados. tu te perdes, buscas o desnecessário, o falso ídolo que imaginas propiciar a embriaguez perfeita e o altivo Deuscanso: Terror Extático, Tempestade, Fim, Início, Batismo de Fogo, de Gelo, de Vácuo, Combate Absoluto, Visão: até onde tudo isto não são mais que Palavras para os de vossa espécie, realidades poderosamente em si mesmas encarceradas, desdenhosas dos esforços e clamores teus e de outros como ti, que aqui já me visitaram? vê, partículas de teus anos, embriaguez mais singela e humana, amamenta-te nela, não te arremetas e não te amamates lá
eis a delicada gravura
delicia-te: tua infância pura
na distância...
mas ainda estala na alma
U.
(mais ameno, condescendendo em percorrer, com melancólico olhar, tempos e paisagens pretéritos, preteridas por perfeitas e irrecuperáveis)
mas se é noite, nem verão se é! saudades precárias essas, sequer se esforçando para virem à tona; longe, além da férrea cordilheira dos anos, trinam para um outro que fui, ou para si próprias, petulantes em seu desdém. também a mim foi vivificante amamentar-me nelas por anos, mas há já algum tempo as sinto apenas como um bando infantil andando pelas estradas de outono ou primavera, ainda indo de casa em casa, em algazarras ou solenes procissões nas estradas, pela lua aradas, lua lady; mas numa outra noite, na noite de outrem, e o menino já não príncipe, já ele não elo da espalhafatosa corrente procissante.
neste outro, empurrado pelo tempo, na noite da alma dos vinte e sete, a certeza de não mais possuir tais suspirosas criaturas pactua com o calafrio da aragem tísica, senão demoníaca, que perpassa entre os prédios muitos e compactos e estúpidos do lugar de onde fugi. compactuam-se essa certeza, a inutilidade da ilusão, os edifícios, o vento, tudo cansativo e patético, tudo junta-se para asfixiar, desnudar, desencorajar qualquer desejo de permanecer lá embaixo ou para lá atrás dos anos retornar. não, não há em mim fome para extrair do presente ou do passado alimento para um futuro. outras flores, verdadeiramente impossíveis, verdadeiramente aminimigas a este outrU.
no meu coração
há agora uma procissão
de horas
a carregar inúteis imagens
a ninguém
sim, quero aturdir-me com
este altar secreto
que se esconde de nós
para que, após, eu consinta em prosseguir, já sabedor do que se esconde em nós, ante nós, por detrás de nós, nossos nós desatados, mas possuindo ao menos a mínima fragrância, após terem enlaçado o ramalhete impossível, exigente, venenoso. Portanto. Dala, dá-me que o foi prometido. impaciento-me, entedio-me. tu, falsa promessa, cansa-me, advirto-a que cresce em mim um involuntário - e indesejado - impulso para retornar lá para baixo, e então lá morrer suicidado ou viver como paralisia inútil. ponto final. Dala, quero somente morrer como real vivente, e antes de morrer, quero somente ver, ver algo que realmente seja. Não nasci para semente. Dala, mostra-me aquilo que realmente É.
Dala
(aparentado menos mágoa do que sente, por ele ter ignorado suas tentativas de sedução)
tua arrogância, ó pequeno, será aqui ignorada. mas, veja: lembro-me que, há pouco mais de um século, concedeu-se ao meu corpo um dos de vossa linha, um dos mais doces e dilacerados dentre vós poetas, recordo-me
senti um fugaz raio de luz
a passear meu corpo
a pisotear tempos mortos
e almas mornas
e a suportar pesados arco-íris
o frágil raio em nada
repousava
eu soube: buscava saciar
as fomes
num altar impossível
e perfeito
suportando, até a morte, as marcas de sua inevitável temporada no inferno. depois veio o outro, na mão mordazes e comoventes flores do mal. depois o outro, leão sombrio, assombrado porta-estandarte à procura de anjos e elegias etéreas-enigmáticas. e, mais recentemente, um ocelânico e suicidoce vidente, com seus bilhetes de suicida, um indesejado hóspede para vosso tempo cinza. e por décadas e séculos vieram muitos
proválvares abreus e varelas
(há breus à janela? abre-a, aabye)
palpavalérys jovens parcas
passíveis emilys e cecílias
publicados eugênios mortos alecrins
paresthepens mallarmés
inquietos kyeats em seus dedalus
im poundicos antenas da raça
prevertsíveis bretons
piedoso samuel: ímpios doces sem mel
pecábrais rosas
polutos augustos
pertinentes seixas e ferlinghettis
tantos infantes insensatos, poetas ora anônimos ora consagrados ora aniquilados, atirando-se, ora crianças galhofeiras ora atribulados ora sóbrios e rigorosos, atirando-se todos aos braços e seios da beleza absoluta, perigosa, todos rimbaudeleirando ao som de rilkíssimas e ocelânicas lírimas, cavalgando para além do meu corpo e da minha órbita, obstinando-se, raros e quase perfeitos, em arder num rarefeito gelo ardente, fogo gélido, muitos corroendo-se na busca a que seus olhos ávidos os condenavam. mas quanto a t
a ânsia furiosa dos teus olhos
é tão frágil diante da fúria
que se nos espera aí fora