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Passa - Ouro
partes  01  e  02

                                    

            Primeira Parte 

             Passa-Quatro

​                   Índice

01 - o Sagrado peregrina mundo afora. 7

02 – o impalpável crepitante sobe a mantiqueira. 18

03 - transitantes entre os entes mantiqueiros. 25

04 - impiedoso ataque à besta da Técnica. 31

05 - o enleio passeia por passa-quatro. 39

06 - o túnel, no útero da terra. 45

07 - olavo se deleita em delitos hoteleiros. 53

08 - somos amparos do Ser, do Mistério, de Deus... 62

09 - na boca de celestiais abismos. 77

10 - a turbulenta volta dos oitenta. 86

11 - deuses e ninfas descem às terras altas. 98

12 - priscila, dourada melancolia. 114

13 - um enigma nada dourado. 127

14 - musical de pássaros e rios, névoas e vivaldis. 145

15 - festival de dúvidas afetivas. 156

16 - nos quintais, ruas e praças de Eros. 171

17 - uma chácara cheia de charme e de águas. 193

18 - uma chácara cheia do fatal 224

Interregno. 250

 

Segunda Parte 

Ouro  Preto. 338

19 - saída do cortejo. 339

20 - na estrada do Real, as entradas do fatal 344

21 - chegada do cortejo. 350

22 – ouro, nascedouro de amores. 358

23 - ouros de ouro. 367

24 - ouro, crescedouro de amores. 372

25 - epifania e eros, nas alturas e névoas de ouro. 383

26 - doença - a revanche, mpo - os avanços. 396

27 – viçosa, rios, manoelzão, canastra, juiz de fora. 402

28 - no mesmo banco, na  mesma praça. 414

29 - crepúsculo de um lazarento. 418

30 - o triângulo e o surto. 436

31 - madrunoite – a dentro ouro preto. 452

32 - a perplexidade e a coragem do Cruciasfixiado. 459

33 - a Dor maior

        e  uma incerta vitória do Cruciasfixiado. 487

34 - prossequências. 493

35 - aurora - renasce-se assim, fácil, fácil? 508

 

 

                 Primeira Parte 

                                Passa-Quatro

 

Pra começo de conversa: comecemos do começo – mas já no começo, uma já tediosa e dupla ou tripla redundância?

Ad infinitum, essa brincadeira de escritor sempre deslumbrado, tal qual menino, com as palavras e com a vida, com dar vida a palavras, a convidar do ar assim qualquer uma, assim sem mais, a com qualquer mera delas querer voar a qualquer hora, a ora orar, a ora obrar, ou o que seja?

Convenhamos. Teremos que aturar tantas brincadeiras e mimimis e meninis jogos ao longo de todo este catatau de páginas? Credo em cruz e em vós e vossas redundâncias! Haja literário Calvário.

                              *

Mas, veja bem, podemos então inventar e inverter, e dizer que estamos começando pelo final. Pelo final da Batalha da Distribuidora, que narrei em Ratos e Ratões. Que tal essa reversal?

Então, livrando-nos da pecha de tediosos, comecemos por tal final, quando já providenciávamos nosso enfim retorno, do interior de São Paulo para Viçosa.

Retorno que não imaginávamos o quão rico, mineiro e gratificante seria, e também o quão rico, erótico-amoroso, grandiosamente erótico-amoroso, seria, e o quão trágico, grandiosamente trágico, seria. Mas foi, sim, foi tudo isso.

                             *

Seria, seria, sereia. A sereia das palavras, da Palavra, seduzindo-me, aqui, e em plenas e serenas serranias mantiqueiras, cheias de plenos seios - que maravilhas de redundâncias! Mas foi, sim, foi tudo isso. Depois conto, em íntimos detalhes, isso dos seios.

Seria, seria, sorria – aqui você não está sendo ainda filmado, registrado, relatado, dissecado, arquivado! Apenas registrados eu e meus admiráveis companheiros e companheiras, personagens de nossa própria Odisseia; personagens e Odisseia admiráveis para mim, claro, mas espero que, pelo menos, também para alguns de vós.

                             *

Afinal, sabe-se que, aqui, ainda não existem nauseantes câmeras de vigilância e nauseantes vigilantes; sabe-se que, aqui, a Voz a nós todos nosotros nos impediu de entrar nos patéticos, internéticos, vulgares, quase selvagens e depressivos anos 2000. Paramos bem em frente às suas portas. Ainda bem, amém! Mas não durará muito esta benção de poder evitar o tempo real, o presente atual e enlouquecente. Mas isso melhor explico no distante e quase catatônico final deste escrito.

Então, aproveitemos enquanto aqui, tanta e tal oferenda da vida; numa terra ainda sem tanto mal – atenção, indireta referência ao último livro do poeta Waldo Mota, de Vitória. Um dos mais consistentes, inventivos e lúcidos do país, no atual, embora ainda não reconhecido o suficiente como tal; como muito sói, e muito dói, acontecer nesses casos de defuntos, e às vezes hipócritas, reconhecimentos de escritores e poetas.

Mas partamos, rumo à mágica Mantiqueira; porém, antes à transcendente religiosidade de Aparecida do Norte, a pedido do ainda devoto mestre González.

 

01 - o Sagrado peregrina mundo afora

Retomando o enredo.

Após o nosso testemunho da Batalha, de humanos contra ratos, em Dentópolis, o mais lógico teria sido um ônibus para São Paulo, e depois direto para Viçosa.

Mas González quis nos levar para conhecer um pouco das cidades da famosa Serra da Mantiqueira, rever amigos do tempo de sua estada na região. E, claro, ver a quantas andava a organização do MPO no sul de Minas. E Olavo comentou comigo que o espanhol também não fazia muita questão de passar por São Paulo, Capetal – por óbvio, depois dos degradantes acontecimentos na cidade comandada pelos ratos. Afinal, SunPaulo, capetal do brutal Capetalismo tupiniquim, tinha tudo a ver com Dentópolis, essa última era uma das muitíssimas dementes e interioranas crias de SunPaulo, Capetal.

De Dentópolis fomos então para Araras, e depois baldeações e baldeações até chegarmos a Aparecida do Norte. Como um bom espanhol das antigas, González sempre se sentia atraído por toda e qualquer igreja católica, e não perderia a oportunidade de revisitar a famosa Basílica, que na verdade ele conhecera quando ainda em construção.

Chegamos cansados, numa quinta-feira à tarde, e decidimos ficar até sábado, talvez domingo. Eu tinha visitado a cidade bem quando criança, no tempo da Igreja antiga, e depois em 80, quando rapazinho, durante a visita de João Paulo II. Essa viagem de Viçosa a Aparecida, pela vinda do Papa, junto com a família de Ilídio e conhecidos, foi verdadeira epopeia, e mereceria bem umas trinta folhas, que espero um dia cumprir. Isso, se Ilídio não o fizer antes, o que, aliás, deveria ser uma sua inquestionável obrigação, ou tarefa.

Mas confesso que não me lembrava mais de como era ser envolvido pela atmosfera de uma grandiosa peregrinação religiosa. Na sexta já começava a muvuca, a impressionante aglomeração de romeiros na cidade. Ônibus com placas de cidades de sul a norte do país, andarilhos, romarias a cavalo, gente aos punhados se arrastando de joelhos em penitências na passarela, uma verdadeira avalanche humana.

González, um peixe dentro d’água, por óbvio.

Eu flutuava a meio da manhã, a maratona católica-transcendente-popular alimentava a minha levitação – isso muito ainda acontecia naqueles tempos, aquela imersão, aquela comunhão com uma multidão que ainda carregava consigo uma alma autêntica, vibrante.

Olavo, Olavo de um tudo e de um nada fazia por demonstrar deboche e descrença.

Tanto que já lá pelo meio dia - a gente já bebido a alguma cerveja e digerido frituras e outras gostosuras populares, ruas e bares afora - num momento em que González conversava com um padre da cidade, já dentro da Catedral, a informar-se sobre algum detalhe arquitetônico do grandioso templo, Olavo chegou sério até eles e, com uma fala compungida, falsamente devota, perguntou a González:

 — Seu Padre e seu doutor Professor, será que se eu pegar com Deus e Nossa Senhora Aparecida, eu vou conseguir terminar meu livro e virar um escritor famoso? - González rapidamente fez que não o conhecia, dando a entender ao padre que aquele devia ser um bêbado ou um pobre desequilibrado, e chamou-o mais para o interior da Basílica.

Quanto a Olavo, saiu de fininho, cabisbaixo, assumindo de fato o papel de maluco, mas com a sua pança de pintor de paredes beberrão dando verdadeiros estremeções, de tanto que ele silenciosamente ria. De minha parte, não fui nem com um, nem com outro, mantive-me sério, atento ao belo cântico entoado naquele momento, e dando a entender a González que não sabia antecipadamente da atitude de Olavo, embora soubesse que o filósofo iria tranquilamente relevar a blasfêmia, por já estar habituado aos rompantes do outro.

O clima agradava, o sol a tarde não estuporava, nem a estuprava, o que só nos levava a adiar o alimento almoço, e depois o manso descanso no remanso de um cochilo.

Depois de bastante perambular, pelos amplos dentros do templo, nos sentamos num restaurante, na praça da antiga Basílica, e bebendo em silêncio observávamos a multidão fluir, a ir lá e cá. Até mesmo Olavo havia se aquietado, um pouco tocado pela atmosfera de devoção, ruminando em silêncio suas próprias meditações e lembranças, como acontecia algumas vezes.

Na juventude, havia estudado no famoso Seminário do Caraça, por alguns anos; certamente devia rememorar aqueles acolhedores e pacíficos tempos de estudos, orações, leituras e celebração da pujante natureza que rodeava o Seminário. Ou talvez estivesse pensando mais a sério, melancolicamente pesando os prós e contras de ter desistido da carreira de padre, para se tornar aquele sujeito desencantado, perdido no meio do mundo e descrente da humanidade, e sempre fudido, sem dinheiro e sem bens materiais. Bom, como se sabe, com Olavo nunca se sabia o que era seriedade ou deboche, reverência ou sarcasmo - com os outros ou consigo próprio.

(Bem, fosse o que fosse com Olavo, informo que neste ponto a Voz me ordena, peremptoriamente, que eu aproveite a ocasião, a referência ao Caraça, para citar um maioral da Literatura mundial, o nosso magnífico Rosa:

“Mas, Santana, que era criatura do Caraça, retrucou:

 — Vinde, amigos, perguntai ao estrangeiro se sabe ou se aprendeu, algum dia, qualquer jogo...”.

De formas que, agora, a Irlanda e Minas irmanadas, encontram-se aqui quites, já que o todo-poderoso Joyce foi citado, de forma devidamente sarcástica, lá em Ratos e Ratões. Mas Minas e Irlanda andam ainda inquietas, a quererem a companhia do sulista Faulkner, lá do profundo-melancólico Mississipi. Veremos se oportunidade haverá de citar o melancólico sulista. E já que em religiosa atmosfera estamos, oremos para que a Voz nos ajude a encontrar a ocasião para tal citar).

                 

                                *

Voltando a Aparecida, creio que aquele ambiente de religiosidade, com a aparição ou a presença do Sagrado no tempo e no espaço que nos cercava, creio que toda aquela atmosfera, ao mesmo tempo pulsante e reverente, deu ensejo e inspiração ao nosso filósofo, e ele começou a desfiar suas lucubrações acerca do acontecido em Dentópolis.

Iniciou abordando aquilo que mais me havia me perturbado, qual fosse, aquele poder absurdo e absoluto que os comandantes do Capetalismo, fossem ratos ou humanos, detinham em suas mãos.

No ônibus, eu longamente discorrera sobre minhas inquietações com relação àquele Poder, que me parecia cada vez mais imbatível, insuperável e confessara que eu não acreditava mais que aquela monstruosidade em que se transformava o tal do Capetalismo — tanto da região do Capetal, quanto de qualquer lugar do planeta — pudesse um dia de fato ser destruída ou superada ou ultrapassada, tal como o Mestre Marx deduzira em suas brilhantes análises. Agora, González começava a sua mui mais longa resposta.

Aproveitando que um casal de idosos havia interrompido González, com um pedido de informação qualquer, eu e Olavo trocamos olhares arrogantes e zombeteiros, entre enfastiados e divertidos, silenciosamente concordando que teríamos momentos de grandiloquentes delírios políticos e filosóficos do nosso filósofo - na tarde que, num calmo e amarelo orgasmo, ardia a sua prenhe madureza e sua plena beleza.

Mas não tão silenciosamente assim, pois Olavo não deixaria passar em branco a oportunidade de cuspir na cara da tarde e de todos nós uma daquelas suas corrosivas gargalhadas, que misturavam deboche, autodestruição e um quê de lamento – parecendo querer agredir o mundo, os outros e, ao mesmo tempo, a ele próprio. A tarde e o casal de idosos se assustaram e se ofenderam, esses últimos agradecendo ao espanhol e se retirando, imaginando estar diante de um indivíduo perturbado, ou simplesmente maldoso, que tinha por hábito humilhar pessoas simples e indefesas.

Por momentos pareceu que González, finalmente, iria estuporar com Olavo, em razão de todos nós adivinharmos o que se passava na cabeça dos desamparados e, agora, supostamente humilhados velhinhos. Eu esperava, e fervorosamente torcia, por uma reprimenda à altura, que, além de punir a impertinência daquele momento, também fulminasse Olavo pela sua patética performance de mais cedo, quando González conversava com o padre na Basílica.

Mas, transportado pelo seu entusiasmo de profeta, González deixou passar batida mais aquela impertinência; afinal, tanto quanto eu, ele intuía que a ironia grosseira e altissonante de Olavo tinha a ver, não com o casal, mas com as próprias ideias dele, González, e tinha a ver com nós três, bebendo e discutindo, a tarde inteira, soluções mirabolantes para a humanidade, em meio a um povaréu que queria cuidar apenas de suas devoções e idolatrias.

Portanto, para eliminar em nós o começo de zombaria quanto às suas ideias, para destruir a nossa suspeita de que ele estava delirando, embriagado por aquela mistura de cerveja, tarde, pinga, povaréu, tira-gostos e mística católica, ele optou por ignorar Olavo e retornou avidamente às suas pregações, buscando esclarecer-nos, o mais o rápido possível, acerca de sua delirante proposta de uma Greve Planetária.

E aí, então, é que o filósofo espanhol carregou mesmo nas tintas da Utopia, do Sonho. A ver se humilhava e arrasava de vez com nossa ironia ou descrença e, mais do que isso, para dar vazão à sua obsessão, à sua católica e metafísica necessidade de acreditar numa redenção da humanidade, para ele uma redenção cada vez mais urgente e possível. Enlevado, poético, indignado, profético; um agoniado e autêntico mensageiro da Voz, ou do Ser, ou da Voz do Ser, ou do Sagrado e do Mistério, sobre os quais nos falaria mais à frente.

— Veja à sua frente, Lázaro, com ou sem o aval do Poder dos comandantes, que tanto te inquieta, as multidões prosseguem em busca do Indefinido, do Impalpável, do nunca Aparecido, nem no Norte nem no Sul - como se sabe, González também adora um jogo de palavras.

— Não, não precisa me lembrar, Olavo, sei muito bem o quanto essa busca pelo invisível e pelo Sagrado é astutamente utilizada pelos comandantes, para manter os negócios em ordem. Sei muito bem como as igrejas colaboram para que ninguém dê muitos ouvidos às ideias e pregações comunistas dos agentes do Gatão Barbudo, como diriam lá em Dentópolis. Não vale a pena nos debruçarmos, aqui, sobre o papel dos sacerdotes, sejam de que religião for, ajudando os comandantes a manter em ordem este mundo aqui debaixo, o mundo da Terra, enquanto prometem, para os pobres e sofredores comandados, um mundo novo lá em cima, o mundo do Céu, perfeito e amoroso e acolhedor, com todos eles protegidos das garras e presas terríveis dos comandantes.

— A questão é decifrar até que ponto essa busca e essa espera pelo Sagrado, mantida e manifestada com teimosa confiança pelos escravizados ou sofredores ou deprimidos comandados, como bem podemos perceber à nossa volta, até onde ela poderá ser efetivamente utilizada contra a ordem e os negócios da Organização que nos rege e nos aflige, utilizada contra os Comandantes, que auxiliados pelos sacerdotes. Será realmente ingenuidade, a desta multidão que a nos rodear e a rodear a história?

— Será de fato uma heresia contra os ensinamentos da Ciência marxista, interrogar, refletir se, em algum momento da história, essa intimidade das pessoas com o Sagrado poderá ajudar os povos do mundo a destruir ou superar ou ultrapassar o atualmente apodrecido e degenerado poder dos Comandantes, utilizando as palavras de Lázaro? De minha parte, assumo a heresia e a ingenuidade, e acredito firmemente que sim, que a busca e a reverência pela presença do Sagrado entre nós terão, não apenas um papel importante na Revolução, mas um papel fundamental, sem o qual não será possível destruir a estupidez dos comandantes capitalistas.

Olavo não perdeu a oportunidade para xeretar, debochar e apontar contradições no argumento de González:

— Mas, pelo que tô entendendo, dotô professô revolucionário, com essa sua genial ideia nem o grande Marx contava?

González ignorou o autossarcasmo de Olavo, macaqueando a si próprio como o operário que de fato era, mas obviamente considerou pertinente a oposição colocada:

— Meu amigo, longe de mim ter pretensões de me equiparar ao Grande Profeta Barbudo. Mas, há já vários anos, tenho para mim que será necessário um verdadeiro ato de contrição da humanidade, para salvar a si própria do abismo para o qual está sendo arrastada, não apenas pelos malditos e estúpidos comandantes, mas também, e isso num grau ainda mais acelerado, pelo Inferno da Técnica. Lázaro tem, sim, um pouco de razão, em seu temor e em sua descrença de que o monstruoso poder do Capital possa de fato um dia ser superado pela Revolução dos Povos, tal como é defendido até hoje pelos seguidores de Marx, e de seus admiráveis e eficientes discípulos Lênin, Trotsky, Mao, e tantos outros heroicos e lúcidos lutadores.

— E porque não tenho completamente razão, González? – indaguei-lhe, sério, antes que a Olavo tempo para mais gracinhas.

— Vejam, o nosso Profeta e Cientista Marx sempre preconizou que a plenitude das vidas humanas, aqui na Terra, somente aconteceria muito tempo depois de realizada a Revolução. Aquele célebre raciocínio, que muito apreciamos: o de que ainda estamos na pré-história da humanidade, e que a jornada verdadeiramente humana sobre a face da Terra somente começaria depois de implantado o Comunismo entre nós. Somente depois de destruída a estúpida organização capitalista é que poderíamos liberar as virtudes e qualidades que cada um de nós carrega dentro de si.

— Algo assim: um traz em si a vocação para conciliar pessoas em conflito, outra pessoa carrega a generosidade para alegrar ou confortar, um outro precisa exercer seu desejo de liderar, outros tão somente a paixão pelo conhecimento - seja o conhecimento dos astros, das flores, da complexidade de nossas mentes, das paisagens e países, da palavra, dos minerais. Tanto mundo, tanta manifestação das coisas nos é ofertada pelo Ser para se conhecer, conversar com elas; e tantas, tantas virtudes morais e sociais, e tantos, tantos talentos intelectuais e artísticos!

— Sim, será uma festa, ou melhor, a Festa! – atalhei e aplaudi - Mas...

No que González não me deu atenção, certamente já prevendo qual seria a minha objeção, e continuou:

— Ora, para mim talvez seja o caso de se inverter um pouco as coisas. Será que para implantarmos o Comunismo, ou uma organização humana decente aqui no planeta, talvez não tenhamos que nos aproximar, antes, pelo menos um pouco, de nossa plenitude existencial e cósmica?

— Trocando em miúdos: até mesmo pra fazer a Revolução a gente vai ter que virar gente antes, é isso? - Olavo interferiu, dessa vez de forma adulta.

— Se você quer colocar a coisa assim, meu amigo... Mas, sonhemos um pouco, ou sonhemos muito, deixemo-nos conduzir por essa atmosfera mística, esta magia popular e poética que nos rodeia... afinal, como se diria aqui em vosso país, sonhar não paga imposto...

Então, distendendo as pernas, cruzando os braços, mirando ao longe, perpetrou-nos mais uma de suas demoradas falas, perpetuou-nos o presente, um presente:

— Vejam, claro que não defendo exatamente como Olavo colocou, ou seja, que primeiro teríamos que educar, transformar as pessoas, para aí, sim, irmos para as ruas fazer a Revolução. Pois a educação das massas e dos comandados se dá no próprio processo de construção da Revolução. Seria uma tolice de intelectual pequeno-burguês pretender ou defender que se possa preparar as pessoas para um processo tão explosivo-criativo como a Revolução. De toda forma, não parece que se deu assim nas gloriosas jornadas dos povos da Rússia, da China, de Cuba, do Vietnã.

— Claro que a vitória da Revolução dos comandados sobre os comandantes significará, ela própria, um processo de aprendizagem, de transformação de cada pessoa.

- Até esse ponto, tudo bem, será natural que as pessoas e povos se voltem para a vida, para o mundo e para os outros, com um pouco mais de calma, reverência e profundidade. Afinal, não haverá mais esta constante e dramática ansiedade em relação ao sustento do tempo presente e às promessas, ou ameaças, do tempo futuro.

- Mas não é dessa educação ou dessa preparação de que vos falo. Não falo de uma pedagogia convencional, formal ou político-social. Não, almejo algo mais longe, mesmo que seja um longínquo ingênuo.

— Pois, uma vez vitoriosa a Revolução, talvez ela precise de uma base de sustentação um pouco mais transcendente, um pouco menos terrena, na falta de uma melhor expressão.

— Pois assim como a Revolução permitirá que as pessoas tenham um novo olhar para as coisas, assim também as próprias coisas, o mundo em si mesmo, as aparições do Ser que nos rodeiam, tudo isso poderá - ou terá que - ofertar à Revolução e aos povos uma base de sustentação mais segura para a nova jornada dos homens sobre a Terra.

— Mas não nos antecipemos, deixemos a questão d’O Ser e a Revolução para mais adiante. Por ora, façamos apenas a Revolução, o que, convenhamos, já será gigantesco desafio.

                              *

Gonzalez então continuou tentando-nos convencer de que, para acabar logo de vez com tudo que estava errado no mundo, agora os trabalhadores teriam que construir a Revolução de uma forma completamente diferente daquelas forjadas na Rússia, na China, em Cuba, no Vietnã.

Desta feita, a Revolução teria que ser, não apenas internacionalista, como pregam os trotskistas (os autênticos marxistas, no dizer do espanhol), mas simplesmente global, planetária. E também não poderia ser gradual no tempo e no espaço, quer dizer, construída de acordo com a realidade específica de cada país ou povo. Ao contrário, teria que ser simultânea, explosivamente simultânea em todos os cantos do planeta. Tratava-se de, nada mais nada menos, de uma interrupção forçada nas engrenagens da máquina capitalista mundial.

— Sim, meus amigos, uma Parada da Técnica, ou, se preferirem, uma Greve Planetária, onipresente e onipotente...

Por tudo isso é que a segunda etapa da Nova Revolução será a mais difícil, e a mais decisiva, não apenas para os destinos dos trabalhadores e dos povos, mas para a própria história do Ser. Pois, na verdade, o novo destino dos trabalhadores e a nova história do Ser estarão radicalmente ligados. Um dependerá do outro, e vice-versa.

Querendo ou não, sabendo disso ou não, ao lado dessa conquista heroica, pela libertação e pela dignidade para os pobres e os trabalhadores, e pelo fim de seus sofrimentos e humilhações, ao lado disso os trabalhadores também estarão lutando por algo maior do que a própria história deles, e estarão construindo algo mais grandioso, até mesmo divino” - mas González esclarecendo que não era algo ligado à religião, ou às igrejas, embora também deixasse claro que as igrejas seriam extremamente necessárias, tanto na primeira quanto na segunda etapa da Revolução).

— Pois quando estiver tudo dominado...

Quando a Greve Planetária estiver consolidada realmente no mundo inteiro...

Com todos os povos ocupando todos os espaços de seus países, paralisando toda a produção e circulação de mercadorias e serviços...

Com todos os povos pensando e decidindo as novas formas de colocar em prática, de enriquecer e de proteger a Nova Organização...

— Então, ao lado de tudo isso, as pessoas e os povos terão uma espécie de iluminação súbita, uma clara e grandiosa compreensão da real tarefa deles nesse movimento. E essa tarefa será, nada mais nada menos, do que a redenção da humanidade, e a redenção de toda e qualquer pessoa, para que possam, finalmente, dedicar os devidos cuidados ao Ser e ao Sagrado. Mas, de novo, não nos antecipemos acerca d’O Ser e a Revolução...

Os povos e os trabalhadores, pelo simples fato de terem destruído a Organização, e pelo simples fato de estarem reunidos ali, pelas cidades do mundo afora, irmanados na coragem e na esperança trazidas pela grande Greve Planetária, todos estarão no momento certo para, finalmente, compreenderem melhor a si próprios, e compreenderem a própria tarefa da humanidade na história, no planeta, e no próprio Universo.

— Aos poucos entenderão que, pelo fato de terem conseguido agir com extrema e tamanha ousadia, como em nenhum outro momento da história, terão dado um salto imenso, para dentro de si mesmos e para dentro do Ser e do Sagrado. As coisas da vida e do mundo começarão a ser vistas com outros olhos, com olhos de filósofos, de poetas e mesmo com olhos religiosos.

De novo González explicava: não no sentido de religião, mas no sentido do Sagrado; haveria, para todas as pessoas, e não apenas para filósofos, poetas e religiosos, um olhar diferente para com tudo aquilo que vem ocorrendo há milhares de anos, na fascinante e implacável jornada dos homens sobre a Terra.

02 – o impalpável crepitante sobe a mantiqueira

À noite: a noite. A noiva amorável e silente.

Ocorreu que.

Cada um correu para o seu lado, na noite de cada um. Olavo disse que iria se informar sobre a zona boêmia e algum puteiro, a ver se na cidade da devoção haveria o famoso contraste do profano com o sagrado. González retornou à sua vivência com os cânticos e silêncios, agora noturnos, da Basílica.

Quanto a mim, quarto. Dos alguns autores que tinha trazido de Viçosa, fiquei em companhia de Rilke. Oportuna visita ao “Livro das Horas”. Calhava com a cidade, o momento. Fiquei em pacificadas leituras, entremeadas de idas e vindas à janela do hotel – que ficava bem em frente à Basílica. Aquela volumosa massa arquitetônica magnetizava-me, com sua penumbra avermelhada, recortada contra os altos negrumes da Mantiqueira.

Mas, por fim, evadi-me da sombria-delicada fala de Rilke, a me ajudar a dialogar com a noturna paisagem, que me desvelava um pouco do Sagrado – a presença próxima da Basílica e a presença longínqua da Mantiqueira. Na verdade, fui obrigado a me evadir de Rilke.

Pois, com as palavras de González ainda ecoando em mim, fui levado a remoer Trotsky e a possibilidade concreta da Revolução Mundial. Pois, em resumo, ainda parecia que tudo o que nosso amigo González dissera não passara disso: colocar em prática o trotskismo, o pensamento de que somente uma revolução internacionalista, global, poderia de fato implantar o socialismo no mundo.

Só que não. Vejamos. Uma breve recapitulação de minha posição em relação à ação política, da qual me afastara há já um bom tempo - decepções petistas.

Em primeiro lugar, a questão da Greve Planetária não era novidade para mim. Após o choque e a perplexidade trazidos pela inesperada queda do socialismo soviético, e pelo doloroso e espantoso 1989, lenta e confusamente eu vinha construindo a suposição de que a única salvação para os povos seria exatamente essa espécie de Greve Mundial.

Acontece que, numa visão rigorosamente marxista, eu não conseguia conceber que pudéssemos parar assim o planeta, emperrar as engrenagens do capitalismo em nível mundial. Isso era por demais fantasioso, escapista – bom demais para ser verdade.

Era simplesmente risível acreditar que pudéssemos construir uma consciência de classe, e um enfrentamento em nível planetário, sem que, antes, cada um dos povos percorresse sua própria trajetória, sofrendo na carne os resultados da exploração capitalista, tomando consciência das origens desses malefícios e, somente então, construindo sua própria resistência.

E, depois, bem lá na frente, quando o próprio Capitalismo estivesse em estado de extrema instabilidade, refém de suas inevitáveis contradições internas, aí, sim, os povos, com seus movimentos de resistência e enfrentamento, poderiam se articular para cada um, à sua maneira, com sua própria história, construir sua libertação e contribuir para a grandiosa Revolução, a implantação do socialismo em escala mundial. Marxismo puro e simples, ciência da história, sem voluntarismos, abstrações.

Mas sempre permaneceu em mim, não uma esperança sonhadora, uma espécie de retorno do espírito da Contracultura, mas uma espécie de intuição, como se algo silenciosa e periodicamente me interrogasse: e se o Capitalismo já estiver de fato em estado terminal? E se não houver mais tempo para uma construção paciente, realista e gradual da revolução dos povos, tal como ensinada pelo trotskismo? E se a história já estiver exigindo de nós uma alternativa concreta à estupidez agonizante do Capitalismo?

Uma alternativa urgente e possível, pois que seria a única opção para não cairmos na barbárie, na fragmentação caótica das milhares de rebeliões que se espalhariam pelo planeta, no caso de uma implosão da estupidez capitalista sem a necessária construção do socialismo.

Depois, quando conheci U., com suas falas e poemas carregados de desespero e ódio contra o Ocidente, fui deixando-me levar cada vez mais pela força da imaginação, e daquela intuição. Principalmente após o épico e cósmico relato que U. me fez na noite de seu encontro com Dala, aquele seu fabuloso delírio poético, no qual ele se alçou às altas órbitas do planeta, então transfigurado em forma de mulher, em forma de Dala. A poesia cósmica, metafísica e explosiva de U., narrando-me a fala densa-perplexa de Dala, me afastava cada vez mais do rigor da ciência marxista.

E veio, então, aquela noite em Aparecida do Norte, precedida dos acontecimentos em Dentópolis e das conversas de González. Algo realmente se transmutava em mim.

O espanhol trazia um novo elemento, um diferencial que – juntamente com o magnetismo que o verbo e o desespero de U. exerciam sobre mim - perturbava, transtornava em definitivo minhas ideias firmemente baseadas no marxismo e no trotskismo. E, ali, ainda à janela, guardado (guiado?) pela onipresente e silenciosa massa da Basílica, eu sentia que me alimentava cada vez mais da possibilidade imediata da Revolução, da superação do maldito-estúpido Capitalismo ainda em nossa época, e não num futuro incerto.

Por tudo isso, concluí que era preciso pensar com seriedade e carinho naquelas propostas, aparentemente estapafúrdias, de o Sagrado ser o real suporte para uma verdadeira e definitiva Revolução dos Povos.

Por óbvio que eu já tivera a oportunidade de ouvir González falar das interpretações de Heidegger sobre o poeta Holderlin, e dos seus complexos conceitos de Sagrado, Mistério, Ser. Mas era a primeira vez que eu o ouvia tentando fazer aquela espécie de ligação entre o Marx e Heidegger, entre a Revolução e o Ser. Aquilo era diferente, fascinante, mesmo que meio delirante, ou talvez fascinante porque delirante, mágico.

                               *

Mas, interrompendo minhas reflexões e saindo finalmente da janela, passei a ficar atento para a chegada de González e Olavo, e voltei à minha leitura de Rilke. Embora o espanhol pudesse obviamente pagar por um quarto para nós, e outro à parte para ele, preferiu um quarto apenas, para todos nós. Claro, seria uma ótima ocasião para ele exercitar suas belas acrobacias verbais, combinadas com as pilhérias ora viscerais, ora apenas inoportunas de Olavo. E tínhamos combinado que continuaríamos a conversa, interrompida lá na praça da igreja antiga.

Porém, como eu estava um pouco cansado das nossas andanças, cumuladas com a viagem e suas baldeações, e já também pacificado com os poemas de Rilke, passei a ficar à espreita para, assim que visse um deles chegar, enfronhar-me em cobertores até a cabeça, a fingir sonos e sonhos – fazia gratificante frio.

Além disso, queria deixar para ouvir González mais descansado e com a consciência mais alerta, aberta, durante a viagem lá para Passa-Quatro, aonde também pararíamos por uns dias, a travar contato com o Major Aloísio, antigo conhecido de González e, por extensão, pessoa supostamente interessante.

Como certamente chegariam em separado, o primeiro que viesse não se atreveria a me perturbar. Com certeza, procuraria logo dormir, sem muito alarde - pelo menos eu contava com isso, sabiam de minha irritação em ser acordado para farras de bêbados.

Mas não contava com os acasos da vida: chegaram juntos, deviam ter se encontrado em algum bar ou nalguma andança pela cidade, o puteiro e o altar se reencontrando, comungando suas buscas, seus apelos, suas perplexidades, fossem nas prostituídas asperezas do chão do mundo, fossem nas encantadas paisagens de templos celestiais-transcendentes.

Depois de algumas garrafas devem ter se animado e então ficado a me procurar nalgum bar, ou em solitária andança – pois isso de andar solitário, às claras ou às escuras, por ignaras ou íntimas ruas, isso era um traço verdadeiramente interessante que nós três tínhamos em comum, e também Ilídio e U..

De formas que já não adiantava eu me esconder, a fingir fadigas e sonos. Quando em dupla ou grupo, bêbados perdem toda e qualquer constrição, e vale tudo em nome de sua alegria e celebração. Apenas me recostei na cabeceira da cama e preparei-lhes um olhar carrancudo-concentrado, de quem estava plenamente satisfeito com suas sérias leituras, dispensando, portanto, quaisquer supostas celebrações de trivial alegria; isso, não na vã esperança de que me deixassem em paz, apenas para não dar o braço a torcer muito facilmente, tal altiva atitude talvez o etílico entusiasmo mitigasse.

Mas foi não a algazarra e, sim, o agradável que sobreveio, súbito sorteio de prêmio a nós. Sim, a fala de González, arauto da Voz, a sua fala escoando lenta, densa, meio que triste, no silêncio da cidade sagrada dos católicos, a navegar o seu olhar lá além da massa da Basílica, em meio àquele obscuro-delicado mar de silêncios e estrépitos noturnos, que se escondiam e esplendiam no soturno, entre a cidade e a montanhosa Mantiqueira.

                               *

Retomou sua narrativa, do exato ponto em que interrompida lá na praça, como se horas não houvessem se escoado desde então. Falou, do cósmico, do transcendente, do Sagrado:

— E eis aqui o ponto crucial, o ponto que há muito anseio por vos apresentar, para vossas cuidadosas e respeitosas reflexões - o espanhol às vezes gostava dessas solenidades verbais, ou quando se tratava de assunto realmente grave para ele, ou simplesmente para debochar do tom de ambientes acadêmicos, professorais; desta feita tratava-se do primeiro caso, claro.

— Pois, para sustentar com firmeza, serenidade e confiança a Nova Organização, será necessário algo que vá além das conversas e decisões tomadas nas milhares de assembleias e reuniões que se espalharão pelo mundo afora. E haverá que se buscar essa base de sustentação numa dimensão mais profunda e mais silenciosa, em algo que vá além das questões referentes ao dia-a-dia da economia, da produção das nossas necessidades, além do dia a dia da política (finalmente tornada democrática e digna), da família, da vida amorosa, que vá além da própria arte.

Hoje, para os marxistas, talvez possa parecer fantasia inofensiva, ou um pensamento pueril, propor a necessidade - para a Revolução e para a construção da Nova Organização - dessa até agora enigmática base de sustentação, de que lhes falo.

É difícil a aceitação ou o entendimento de que, consumada a Desorganização e a Reorganização, levada a cabo pela Revolução Planetária, vá haver alguma necessidade de que os povos e os trabalhadores precisem se apoiar em algo fora de seu movimento, sua solidariedade, sua lucidez, sua experiência, sua amizade, seus encontros e reencontros constantes. Ainda mais se apoiar em algo tão abstrato como o Ser e o Sagrado, como se fosse uma nova religião, um novo mandamento, um novo Mistério.

O que o espanhol dizia era que, dali para a frente, todas as pessoas, fossem pobres ou ricas, brancas ou pretas, velhas ou novas, mulheres ou homens, homo ou heterossexuais, cruzeirenses ou atleticanos, com ou sem óculos, com ou sem cachorrinhos frescotes ocupando as calçadas (quando estava meio chapado, González também gostava lá de umas gracinhas) todos, sem exceção, começariam a se tornar nada mais nada menos do que poetas e filósofos, ou como gostava de dizer:

— Finalmente cumpriremos o nosso destino aqui na Terra: todos nos tornaremos mensageiros e testemunhas do Sagrado.

O Sagrado, meus caros, o Sagrado!

A simples e poderosa e insubstituível Palavra.

Isto que está ao alcance do coração e das vistas de cada um. Seja quem for, basta estar vivo, basta ser um existente no mundo para ter acesso ao Sagrado, para ser convocado ou convidado a realizar a abertura de sua alma para com ele, pois o mundo inteiro é todo Sagrado e Consagrado.

— O Sagrado está em qualquer canto do planeta, seja coisa ou lugar, seja grandioso ou pequenininho, ali faz o seu ninho; e apresenta-se em qualquer mínimo minuto de tempo. Basta ter olhos e coração para senti-lo, não para vê-lo, pois ao Sagrado não se vê, nem se ouve diretamente, vê-se e ouve-se as coisas e pessoas do mundo, e nessas presenças sente-se então o Sagrado, desde que a pessoa esteja pronta e desejante para essa abertura que leva até ele.

Ao sentir a emoção, a profundidade, a alegria e o louvor, na voz com que González falara a simples e poderosa e insubstituível Palavra, e depois todas as outras palavras que haviam se seguido (com exceção das suas gracinhas) a gente como que entrava em estado de graça, sentia como estivesse se convertendo, não a uma religião, mas a algo diferente, inexplicado - como se nos convertêssemos a um... Mistério. A gente era transportado para alguma espécie de enleio, tal como acontece nas nossas infâncias.

(A propósito, vejam-se os enleios de Juvenal, quando em companhia de Pedro Faria, pai de nossa amiga Jandira, em Juvenal e Jandira. Lá, a coisa fica um pouco mais clara.)

 

03 - transitantes entre os entes mantiqueiros

Manhã seguinte, café bem cedo, e a ainda alguma andança nas vizinhanças, a respirar um pouco mais das peregrinações - despedidas, o leve sentimento de uma saudade arrependida, por sabermos impossível (pelo menos para mim e Olavo) a volta de uma plena comunhão com a mitologia católica.

E tomamos então o rumo de Passa-Quatro. Já não era sem tempo. Além de nos apresentar o seu amigo Major Aloísio, González também nos levaria para conhecer a mãe do famoso e admirável José Dirceu. Talvez tivéssemos até mesmo a sorte de encontrar, na cidade, o próprio camarada Comissário, como ele gostava de dizer, emulando o jornalista Elio Gaspari.

Para González, a questão de Zé Dirceu era deveras interessante, emblemática até. Mas não era hora de ouvir suas explanações acerca do Comissário - embora sempre fosse agradável ouvi-lo logo de manhãzinha.

Não era momento, tínhamos preocupações mais imediatas. Pois não havia ônibus direto de Aparecida a Passa-Quatro, tivemos que ir até Lorena ou Guaratinguetá, não me lembro. Ao menos sorte demos, o ônibus quase vazio, e todos nós três nas poltronas da frente, a deleitarmo-nos com a estrada.

Lembro-me de agradáveis colinas, serranias e que tais, com suas vegetais coberturas - veludosas e volumosas verduras, desejantes de nós e de nossos olhares, e nós desejosos de versejar sobre tantos entes verdejados. Abundante simbiose entre o Espírito e a Natureza. Eu e González brincamos: até parecia que Hegel e Heidegger conosco viajavam e palestravam, e também sentiam e cuidavam dos entes do mundo.

Perante tal abundante farfalhar dos entes à frente e rodeantes, a ciciar-nos convites para a clareira do Ser, não havia que tirar os olhos da paisagem, e nem havia que ocupar a boca, os ouvidos e o pensamento com reflexões e argumentos. Portanto, houve-se por bem deixar a continuação da fala de González para mais tarde, tratasse ela do Sagrado ou do nada angelical Zé Dirceu.

Por fim, alcançamos o topo da Serra, praticamente a divisa entre São Paulo e Minas. Bendito e demorado retorno à pátria, à Origem!

Lá embaixo, mas ainda em altas terras mantiqueiras, já divisávamos ou adivinhávamos a tão falada Passa-Quatro.

Mas González nos avisou que, em breve, voltaríamos à divisa. Ele iria nos levar a conhecer o famoso túnel ferroviário, por óbvio agora desativado, aonde ocorrera furiosa batalha entre paulistas e mineiros, na chamada Revolução de 32. Que na verdade fora mera tentativa reacionária, dos poderosos quatrocentões da terra do Capetal, para evitar ou interromper as mudanças que o gauchesco e valoroso varão Vargas - embora meio caudilhesco e meio baixote - promoveria nas estruturas do país, com o apoio de libertadores mineiros e outros estaduais liberais e progressistas.

                                *

A pedido de González, o táxi nos liberou bem no meio da Praça da Matriz. Quis que andássemos um pouco, travando logo contato com o lugar, e não carregávamos muita bagagem.

A emoção clara e rara, de cara o encanto à primeira vista, no encontro com a pequena cidade. A bela surpresa. Chamou-me logo atenção a larga, longa e arrojada escadaria que levava à igreja. Impunha-se, atraía. Também a própria pracinha: retangular-estreita, alongada; enfim, diferente e delicada.

E percebi que aquela empatia estava apenas no começo, à medida que fomos andando e mirando em derredor. A estação ferroviária, o casario antigo bem conservado, que se espalhava em todas as direções, e lá no alto a atenta presença mantiqueira a sempre nos acompanhar e convocar o olhar.

E, por óbvio, a friagem da tarde que já se apresentava, dando-nos as boas-vindas junto com as carícias de advindo vento do longe. Os dias e noites seguintes somente fariam por consolidar aquela empatia e aquele encanto à primeira vista.

González meio que se atrasava intencionalmente, a observar, divertido e curioso, o efeito que a chegada e o breve passeio provocavam em mim e em Olavo. Mais uma vez o benigno filósofo espanhol tinha acertado, em seu louvável hábito de criar momentos singulares-poéticos.

Mas o amigo Aloísio morava na parte alta da cidade, dos ombros as bolsas ameaçavam cair e invadir nossa leveza d’alma e, em havendo ainda considerável morro a vencer, houvemos por bem findar o nosso enlevo - até para preservá-lo em vindouras andanças e venturanças.

- Major Aloísio apresentando-se, Comandante González! - a aparição no alto de uma esquina, repentina, capitaneada por uma voz com um tom de fato militar, saudando o aguardado e agora aparecido amigo González.

Que se nos apresente, então e enfim, Major Aloísio!

De estatura média, no comum, de pele negra, um pouco menos clara que a de Olavo. Tinha rosto simpático, acolhedor, voz ora séria, ora cantante. A disposição física, o semblante firme e um rosto de pele rija não denunciavam uma idade que, por González, já sabíamos avançada. Era cria da década de 60, enfrentara adversidades por ocasião da ditadura militar, embora não houvesse tomado uma posição contundente contra o regime, como haviam feito centenas de outros militares.

Mas González nos dera a entender ter havido alguma ligação, discreta, do major com o guerrilheiro capitão Lamarca, talvez até mesmo em razão de algum parentesco. Mas não dera mais detalhes, inclusive lembrando que, de forma alguma, tocássemos no assunto em presença do major.

Séria, ereta figura a aguardar o espanhol que subia num silêncio também sério, a cabeça erguida para o alto, mas ainda sem proferir palavras. O major, quase imóvel, permanecendo em continência rigorosa-silenciosa, até o exato instante em que ele e González se defrontaram, quando então aquela aparente tensão se transmutou em apertado e irmanado abraço, entremeado de calorosas e misturadas exclamações:

— Ah, meu amigo filósofo, por que me abandonaste?

— Velho combatente, e quando irás à minha viciosa e Viçosa terra?

— A idade, a idade... A hora da despedida... Mais de oitenta, amigo velho...

— Sim, sim, mas as cidades, as cidades... as estradas...

— Quem me dera eu com sua força...

— As vagâncias e viajâncias... elas curam dores e ânsias...

— Tem os que se encantam com as cidades... E os que se contentam em acolher os viajantes...

Por fim, deu ele pela nossa presença. Desgarrou-se de González e veio anos cumprimentar, ainda solene, mas sorridente e acolhedor. Rumamos para a sua casa. Ficava bem em frente ao cemitério da cidade. Pães e bolos caseiros, espesso café com leite da roça, até um crocante biscoito de polvilho, que eu somente tivera o privilégio de comer pelas bandas do Vale do Mucuri, em Poté - desses raros que não ficam murchos e emborrachados por dentro.

— Tudo de minha lavra, amigos viajantes, comam à vontade! - até González se surpreendeu ao saber que ele é quem fizera quitandas tais e tão gostosas. Aloísio explicou que, em advinda a viuvez, acabara por encontrar na cozinha uma forma de passatempo, ou de terapia, se preferíssemos assim.

— Vocês e o meu amigo, que são doutores nas dores da alma, devem saber melhor do que eu o que aconteceu - e nos dirigiu um olhar aquecido-sorridente; González certamente lhe falara de nossas pretensas qualificações literárias.

Aquilo, por óbvio, nos deu a oportunidade (ou foi a chave, como se diria modernosamente) para encetarmos profundas conversações acerca da das complexidades da alma, quando da perda de alguém tão próximo, como uma companheira de mais de quarenta anos, como o era o caso.

                                *

Findado o lauto lanche e a acalorada conversa, chegáramos a um acordo: as idas e vindas de major Aloísio pela cozinha, sua repentina descoberta de uma vocação para a culinária, eram certamente uma forma de manter viva sua história com Dona Eunice, preservar e mesmo resgatar memórias do vivido em comum. As receitas que utilizava eram, por óbvio, as mesmas receitas que a falecida praticara durante anos, e em relação às quais ele nunca demonstrara curiosidade, apenas deliciado apetite e às vezes gulodice. Agora, era a sua forma de entabular silenciosa conversa com a ausência presente da companheira.

Muito lhe agradou nossa dedução; na verdade ele já aventava, ou matutava - como ele mesmo dizia - algo assim, mas que não punha em claras ideias, por constrangimentos de simples cidadão do interior ficar a especular, ou fuçar - como ele mesmo dizia - com assim profundas coisas da mente e da alma. Preferira esperar o parecer de seu amigo filósofo, reforçado pela importante contribuição dos amigos de seu amigo - nóis mesmo, uai.

Major Aloísio, como bom e já idoso mineiro, tinha lá dessas manhas e artimanhas. Simular um caráter simplório e matuto que estava longe de possuir. Agradou-nos de imediato, aquela sua matreirice em fingir-se de simplório, o que o tornava em ainda mais puro e autêntico matuto, pois que era matutice esperta, que se finge de tola – ancestrais mineirices, mesmo em divisas com modernosas paulistices.

Propus passeios para o dia, o seguinte. Particularmente, o famoso túnel da famosa batalha entre mineiros e paulistas; mas também, e talvez até mesmo em primeiro lugar, andanças bem matinais pelas largas, arejadas e simpáticas ruas de Passa-Quatro, com seu bem conservado casario. Mas não era momento. González iniciava a sua fala, ignorando-me quase por completo, a não ser por breve e difusa concordância:

— Em breve acertamos o amanhã, caro Lázaro... Mas, no agora e no hoje, licença para refletir modestas palavras, sobre essa singular postura de nosso Aloísio... E, ao mesmo tempo, para dar continuação à nossa conversa de Aparecida... O tempo é de amigável crepúsculo, o amigo que nos acolhe gosta de boa conversa, o Ser, os entes e a vida nos convidam a celebrá-los... Permitam-mo?

Major Aloísio, matreiro mais uma vez se fez:

— Mas o amigo é que tem me dizer se tenho licenças para ouvir essa qualidade de palestra de vocês, uai!

— Aloísio, a eles você bem que engana... Pois, como você pediu, ainda não lhes disse quem você é, e quem você foi... Mas deixe estar, a hora está a chegar...

Olavo eximiu-se de qualquer manifestação ou deboche, talvez em respeito ao fato de Aloísio também ser negro.

Quanto a mim, como me queixar da suposta indiferença de González para com os meus planos e anseios de passeios?

Pois sabia que nova Epifania verbal afloraria, em acolhedora morada, em mantiqueira noite; ao menos para mim era vera Epifania, Voz oriunda do próprio Ser, todas as aquelas palavras que estavam a advir de González, nas últimas horas.

Além disso, curiosos para saber o que o espanhol nos diria mais tarde sobre Aloísio - dispois, ora pois, depor-nos-ia o nosso amigo espanhol acerca do enigma de seu amigo, que sabíamos existir; enigma,sim, ora pois, pois um ex-militar amigo de alguém do porte de um González - então assim, sem mais?

04 - impiedoso ataque à besta da Técnica

Mas, enquanto não, pôs-se então em ação o espanhol, a acionar a sua densa-suave maquinaria de especiarias verbais, retomando quase que exatamente do ponto em que parara, lá em Aparecida.

— Mas como fará o Sagrado para germinar em meio à febre e ao êxtase da maior das revoluções, e abrir-se como amável e preciosa flor para os povos e trabalhadores do mundo inteiro?

Como convencer esses povos e os trabalhadores de que, somente através do Sagrado, haverá uma sólida e confiável base de sustentação para a jornada humana sobre a Terra, nessa sua nova e heroica etapa?

Aí é que está o nó da questão, o x do problema. Pois não caberá ao Ser e ao Sagrado se imporem à renovada alma, ou à renovada consciência, das pessoas que agora habitarão e construirão o novo mundo.

— O Ser sempre se envia e sempre se enviou às pessoas, aos entes humanos. Como já foi dito, o Sagrado se oferece a nós em qualquer momento, em qualquer lugar do mundo. E sempre coube, e sempre cabe, a cada um, a cada momento, em cada lugar, aceitar ou recusar esse aparecer do Sagrado entre nós. Na verdade, toda e qualquer pessoa, seja lá quem for, já teve, não apenas acesso ao Ser e ao Sagrado, mas um convívio permanente com eles, num certo tempo de sua vida.

Esse tempo, como cada um de nós bem o sente, é o tempo da Infância. Nenhum de nós se esquece da pureza com que sentiu e transitou pelo mundo nos seus primeiros tempos. Aquele frescor das coisas, e o alegre ardor com que nossos olhos as viam. A nossa nunca cansativa andança por cada recanto, para ver, apalpar, cheirar e dar nome à coisa nova, ao movimento novo que surgia à nossa frente, como que brotando de um lugar mágico, ou de uma oficina invisível e por demais criativa. Tudo era novo, bonito, amigo, fresco. Não à-toa, ao nos lembrarmos da Infância temos a conhecida sensação do Paraíso Perdido.

A Infância é o tempo em que estamos de fato abertos para o convite do Ser e para um convívio adequado com a sua força, magia e pureza. É lá que podemos provar a cada instante do verdadeiro Sentido de estarmos aqui neste mundo.

— Um sentido do qual a Arte e a Religião se aproximam, mas que não diz respeito a nenhuma ciência, nem mesmo àquela ciência que orientou a Primeira Revolução, aquela que foi genialmente vislumbrada pelo profeta Karl Marx.

Pois do que precisaremos, na Nova Revolução é de uma espécie de revisitação a essa atmosfera da Infância, para que haja um retorno ao real Sentido de estarmos neste mundo.

Mas, se em princípio o Sagrado não se impõe, apenas se mostra e convida, não podemos ter nenhuma certeza de que esse grandioso e redentor Encontro dos povos ocorrerá junto com o Sagrado. Poderá acontecer que os povos e os trabalhadores decidam caminhar com suas próprias pernas, e suas próprias razões, não dando tanta atenção assim ao Sagrado.

— Mas tenho para mim que estamos vivendo um espetacular e decisivo momento nesta época. Penso que a época da Nova Revolução seja o tempo em que o Sagrado e o Ser se mostrem de maneira mais nítida e contundente aos povos.

O tempo da Nova Revolução será o tempo propício para aquele retorno e aquela revisitação ao Sagrado experimentado na Infância, o tempo propício para que todo e qualquer um esteja novamente aberto à visão e à sentição do envio do Ser, aberto para entender e aceitar o convite do Sagrado em suas vidas, e dessa vez em definitivo, e não apenas passageiro como na Infância, ou como no tempo dos antigos deuses.

Desta vez, o Sagrado e o Ser se enviarão à humanidade como Destino, quer dizer, como algo irrefutável, irrecusável.

Olavo pausou-o:

— Destino do Ser, sô professô? Mas num ia ser nóis que ia fazer nosso destino? - Olavo não perderia a oportunidade de leve deboche, travestido de questionamento besta.

— Explicarei melhor. Mas, antes, Olavo: há outros nomes com os quais seria bom você se habituar, teremos que falar, com mais detalhes, acerca de suas pregações. Por exemplo, os filósofos Hegel, Heidegger e Habermas, todos alemães, como o nosso profeta Marx, e alguns outros. Depois mostro a você como se escreve e se pronuncia os seus nomes. Vamos tentar primeiro encontrar as palavras certas, para falar de forma simples acerca de suas pregações

Foi pertinente, e há muito por mim aguardada, essa resposta aos deboches de Olavo, aquela bela estocada que o espanhol lhe deu, fazendo clara e irônica menção às lacunas no seu convívio com os filósofos – sabe-se que Olavo não levava a Filosofia muito a sério, não tanto quanto a Literatura.

— Num vai ser difícil, doutô filósofo, todos eles começam com a letra R, né? - a escrota figura não dava o braço a torcer; ignorado, por óbvio.

— Para o profeta Heidegger, quem escolhe a maneira como os homens vivem as suas vidas, e o modo como se relacionam com o seu mundo, não são os próprios homens. É o Ser quem dá o tom e o ritmo da dança dos homens e mulheres sobre o planeta, ao se enviar aos homens como Destino, ou Destinação.

Mas não se trata aqui de destinos individuais, nem mesmo dos povos. Trata-se da humanidade mesma, da história da humanidade se realizando como Destinos. Portanto, o filósofo fala de poucas e grandes épocas, poucos e grandes Destinos, que não duram apenas anos, mas séculos e séculos. E é somente no meio desses séculos, e conduzido nesses grandes e duradouros Destinos, que cada um de nós realiza seu destino individual.

Não se impaciente, Olavo, não vamos nos estender muito sobre isso... já, já, voltaremos mais diretamente à segunda fase da Nova Revolução... Enquanto isso, faça a sua parte com mais boa vontade e preste atenção.

— Para resumir: o que importa é que o Destino atual, através do qual o Ser se enviou aos povos desta nossa época, é através da Técnica, a qual possibilitou todo esse magnífico progresso científico e industrial que vemos à nossa volta.

A Técnica, personagem central da história que vivemos há já alguns séculos.

Como disse o poeta U., em sua delirante narrativa ao nosso amigo Ilídio, lá no Dala: “a Técnica ocidental em seu voo inigualado...”

Sim, a Técnica, que no seu início nos trouxe o fascínio e o domínio;

Depois, o começo do conforto e do descanso;

Depois, a promessa da abundância;

E, agora, o cansaço e o medo, o tédio e a descrença.

Sim, o cansaço, a perplexidade e o medo estão por todos os lados.

— Antes do advento da Técnica, apesar de tudo havia um melhor convívio, ou uma maior aproximação, das pessoas com o Ser e o Sagrado, eram tempos mais pausados e pacíficos. Num mundo que não era tão estupidamente barulhento, podia-se ouvir melhor o vento, a chuva, o pássaro, o grilo, e até mesmo a voz das outras pessoas.

Num mundo que não era tão estupidamente feio e tão cheio de plástico, ferro-concreto, alumínio, podia-se ver com mais nitidez e com mais carinho a chuva, a árvore, o rio, o bicho, a estrada, e até mesmo as outras pessoas. Isso era um convívio um pouco mais próximo com o Ser e o Sagrado - claro, não era o mesmo frescor e vibração e magia da Infância, mas, ainda assim, um convívio.

Mas, até mesmo esse convívio foi, aos poucos, sendo eliminado pela Técnica, a visão das aparições do Ser foi se tornando cada vez mais embaçada por ela; com suas fantásticas invenções, sempre renovadas, a nos seduzirem e distraírem de nós próprios, e a nos desviar, a cada dia um pouco mais, do Ser e do Sagrado

E nisso o Sagrado foi esquecido. A cada nova invenção, a cada ganho de velocidade ou de potência, neste ou naquele maquinismo, nós fomos levados a ver o vento, a chuva, o pássaro, o grilo, a árvore, o rio, o bicho, a estrada como realidades cada vez mais monótonas e sem graça.

— Claro que ainda temos obscuras lembranças e saudades de tudo isso, e ainda visitamos essas aparições do Ser, até mesmo com certa frequência. Mas exatamente assim: para visitarmos brevemente e retornamos logo ao maravilhoso, veloz e diversificado mundo ofertado pela Técnica. Nunca como viajantes, exploradores e nunca com o devido cuidado, silêncio e reverência, mas sempre como... turistas!

Turistas encantados com a paisagem, com a natureza. Turista e natureza, não por coincidência, duas palavras convenientemente valorizadas nesta época do domínio da Técnica. O ente humano, privilegiado pelo Sagrado, transformado em... Turista! O convívio, o cuidado com a clareira aberta pelo mistério do Ser, tudo isso reduzido a palavras como natureza e, às vezes, a tagarelantes ecologias, a belas paisagens e mesmo reduzido a apenas poéticas palavras! Ora, o Ser espera mais de nós, e nós merecemos e precisamos mais do Ser.

                                   *

Nesse ínterim, novamente percebíamos em major Aloísio deveras e concentrada atenção. E não a modo de um curioso, ou de um iniciante, para quem aquelas singulares palavras seriam um mundo de difícil acesso. Nada disso. Definitivamente, ele não tinha nada de militar simplório, estreita mente, e era óbvio que ele e González tratavam de palestras assim, em suas conversas ao telefone.

González, ora pois, pois, haveria que nos contar, ainda aquela noite, a verdadeira história de Aloísio. Tinha a vaga intuição de haver por ali ares de guerrilhas, perseguições, enfrentamentos com a ditadura - afinal, como eu e Olavo já supúnhamos, o espanhol não teria laços tão fortes se se tratasse de um típico militar aposentado.

Mas foi exatamente Aloísio a causa da interrupção das palavras do espanhol. Mas por indireta responsabilidade, diga-se. Chamavam-no do quintal. E era exatamente um Nicanor, um seu vizinho, que vinha tratar e confirmar o passeio para o dia seguinte. Aloísio tinha carro, mas não dirigia mais – não choferava, como ele mesmo dizia. Nicanor era quem lhe fazia de motorista, e vinha confirmar horários e trajetos para o dia seguinte. O carro era um confortável Opala.

Fui logo intervindo, no que ele adentrando a cozinha. Requeria, eu, que não saíssemos para o túnel em açodadas horas, queria antes, e bem cedo, um bem e belo vagar em meio a névoas de alvorada, por planuras de ruas passa-quatrenses e a mirar alteados horizontes mantiqueiras.

No que retrucado por Aloísio:

— Se tá querendo frescor, friagens e neblinas, aí é que temos que subir cedo a serra... O moço vai perder coisa boa, a boca do túnel vai tá lá toda tampada de brancura... E, mais tarde, um mar de nuvens lá da Serra até na baixada da via Dutra...

E também retrucado por González, embora apenas com silenciosos, mas ostensivos sinais de sua concordância com Aloísio. Declinei, então, e ficamos de vagar, nas urbanas névoas da alvorada, no dia seguinte ao passeio. Seria até mais organizada a excursão, poderíamos andar, com mais calma, por mais tempos e distâncias; afinal, não se falava ainda no dia de nossa partida de Passa-Quatro.

Mesmo porque Aloísio trocava conversas com Nicanor e González sobre provável ida a cidades próximas, às quais queriam revisitar, e nos apresentar - Alagoa, São Sebastião do Rio Verde, Itamonte, com direito a conhecer o alteado e altissonante Itatiaia, claro. Sim, muito tempo haveria para muito cuidar dos entes da cidade e da região.

No que, então, retomou o espanhol, tendo se ido o prestativo Nicanor:

— Mas de toda forma, nós estamos em meio a este fascinante, e ao mesmo tempo assustador projeto de domínio, que começou a ser executado lá atrás pelo Ocidente grego e romano, e hoje consegue envolver todos os povos do mundo, através do implacável poder da Técnica, essa mesma Técnica que, por sua vez, é apenas a forma como o Ser se enviou à história, agora e lá atrás, como Destino da humanidade.

A Técnica recebeu uma espécie de tarefa, ou ambição, para exercer um domínio total sobre a matéria, a energia, sobre o planeta, e até sobre os próprios homens, sobre qualquer coisa que dissesse respeito a eles: seu corpo, suas doenças, seus prazeres, sua mente, seus desejos, seus afetos.

Mas a Técnica não cresce em árvores, não nasce no mato, nem cai do céu. O que dela seria se não fossem as pessoas? Há que haver, então, uma espécie de Desafio, no qual os homens são convocados para executar esse Domínio, junto com a Técnica; e os povos foram aos poucos abraçando o projeto de conquista iniciado lá atrás pelo Ocidente – Grécia, Roma, Europa, América.

— Mesmo os povos que tiveram o corpo e a alma brutalmente massacrados, por esses primeiros povos dominadores - aqui, é preciso esclarecer que a Grécia contribui com o Espírito, não com a espada e a bomba - mesmo eles acabaram sendo envolvidos pela marcha da Técnica sobre o planeta, por imposição e falta de opção, claro, mas também muito por adesão, sedução, entusiasmo. Afinal, quem está este tempo todo no comando não é o Ocidente, nem a Humanidade, nem a Técnica, é o próprio Ser, que se enviou a nós como Destino desta forma, e não de outra.

Mas as pessoas e os povos jamais aceitariam este Desafio, jamais abraçariam este projeto de conquista total e infindável, se estivessem seduzidos, ou docemente embalados, por um pacato convívio com as aparições do Ser e do Sagrado.

Porque, no fundo, a força abissal que se esconde nas puras aparições do Ser, e a poesia que se irradia do Sagrado, são ameaças ao poderio da Técnica.

— Para que as pessoas pudessem dedicar tanta atenção, energia e disposição ao trabalho exigido pelo domínio total, colocado pela Técnica, e dedicar tanto prazer, euforia e falatório aos mecanismos e seduções, produzidos através dessa mesma Técnica, elas teriam que dedicar cada vez menos atenção e cuidados para com os convites do Sagrado, que não se nos impõe, mas se nos mostra silenciosamente, através das aparições do Ser: o vento, a chuva, o pássaro, o grilo, a árvore, o céu, o rio, o bicho, a estrada, as outras pessoas. Aceitar a convocação da Técnica e, ao mesmo tempo, cuidar do Sagrado, eram duas coisas mutuamente excludentes, que definitivamente não combinariam.

Assim, foi o próprio Ser que nos conduziu para vê-lo como revestido de pobreza, envolto por uma imensa monotonia e estranheza, para que, assim, somente o visitássemos como barulhentos e eufóricos turistas. E, junto com essa sua falsa pobreza e monotonia, o Ser também inoculou em nós o medo. O medo de estar sozinhos com ele, com a sua força e o seu silêncio, e o medo de dialogar com esse silêncio do Ser. Para se enviar a nós como destino em forma de Técnica, o próprio ser precisou se deixar ofuscar e ofuscar o Sagrado, e isso em mui alto grau.

 

05 - o enleio passeia por passa-quatro

González parou, súbito. A boca entreaberta, como se pretendesse prosseguir a fala. Mas mais atento fitando-o, desconfiei que o que se passava com o espanhol era um enleio, essa espécie de levitação silenciosa, e rara, por demais rara, que às vezes sentimos em meio às pessoas, ou junto de alguma pessoa.

Percebi um seu olhar como se a um céu a orar, mas um céu singular, um somente seu céu – uma sua semente do Ser? Ele emudecera de vez, ou melhor, falava através dos silêncios de seu céu. Orando ou a um mundo interior, em extremo encerramento, em si cerrado, em si protegido; melhor: um mundo próprio, melhor, orando ao seu próprio.

Ou orando a um extremo espaço exterior, por demais extenso-longínquo, aberto. Como se vagando, não exatamente bem no meio do seio do Cosmos, mas, ao contrário, bem nas suas próprias e obscuras bordas.

Sim, a consciência de González lá estava, nos exatos instantes em que o Cosmos avançava cada milímetro, metro ou quilômetro, ocupando mais e mais o nada, a cada segundo, expulsando-o cada vez para mais longe – a luta ininterrupta, incansável, mas talvez inglória, fadada ao fracasso, pois o Tudo, fisicamente falando, jamais poderá ser maior que o Nada que o rodeia infinitamente por todos os lados, o Nada sempre estará à espreita, à espera dos incansáveis esforços do Tudo.

Entendi que era um e era outro, em mesmo instante. Interior e exterior, imo da alma e confins do Cosmos. Entendi que González se encontrara, encontrara o seu próprio, percebia-se no meio de uma gloriosa e poderosa comunhão com o próprio Ser.

Sem o perceber, sem o planejar, González havia gerado, para ele próprio e a partir de si próprio, uma verdadeira epifania, mágico e poderoso instante de percepção das coisas, dos instantes e de nós, e o instante também trazia consigo a percepção dele próprio em meio às coisas, à noite e em meio a nós que o ouvíamos.

Essa sua autoepifania, na sua poderosa mistura de lucidez e encantamento, haviam-lhe mostrado a singularidade da ocasião.

Pois ele se viu, ele se percebeu, falando aos amigos, numa tão comovente, doce e persistente perseguição ao Ser e ao Sagrado. E sentiu que, através daquela sua doce, intérmina e incansável fala, tudo então se fundia: nós, as coisas, a noite, o próprio Ser descia até ali, desvelava-se ali. E aquele momento em que percebeu isso, o momento em que entreabriu a boca e emudeceu, foi o momento da aparição de sua autoepifania.

E entendeu que para manter o encantamento seria preciso emudecer, deixar que o próprio Sagrado pousasse ali na casa, na cidade, na noite. Por óbvio, o Sagrado e o Mistério somente poderiam aparecer ladeados pelo silêncio, jorrados dele. E era como se o Sagrado liberasse González da obrigação, ou tarefa, de continuar a falar, ininterruptamente, naquela tão comovente, doce e persistente perseguição ao Ser.

                                *

E esse foi, então, o momento em que se iniciou, ou que jorrou, o seu enleio, que captei rapidamente assim que lhe fitei os olhos e a boca. Mas não apenas eu o captara, senti que Olavo e Aloísio também haviam sido envolvidos por alguma presença silenciosa e magnética.

Nas parcas ocasiões em que me foi concedida essa mágica comunhão, ela sempre ocorreu em contato com uma pessoa apenas, nunca num grupo, ou numa multidão. E eu, até aquela noite, não saberia dizer se esses momentos de enleio são mútuos, quer dizer, se são sentidos também pela outra pessoa. Ou se esses momentos são coletivos, quando aquele que é bafejado pelo enleio está em companhia de um grupo, como era o caso ali.

Ali, eu soube que o enleio pode ser, sim, compartilhado. Pois que eu participava, ao lado de González, da silenciosa comunhão com o indizível do Mistério. E sentia que também Aloísio reverenciava o momento e a figura de seu amigo. Mantinha os olhos um pouco voltados para o chão, às vezes dirigindo-os rapidamente para González - na humildade de fitar o chão havia como que a singeleza de uma oferenda, e na brevidade de mirar o amigo habitava o receio de quebrar um encanto.

Quanto a Olavo, o próprio do momento se apropriara até mesmo dele. Se não demonstrava a mesma tensão e densidade que eu e Aloísio, ao menos se percebia nele uma rara quietude, uma rara paz de espírito, que não deixava lugar para a costumeira e carrancuda amargura consigo próprio e com os outros. Também mirava González vez por outra, mas da mesma forma discreta que eu e Aloísio.

Na verdade, todos nós mirávamos uns aos outros - aí incluindo-se o próprio González – mas não eram olhares com carga interrogativa ou expectante, e sim discretos, pacificados, pacificando-nos uns aos outros, como se todos soubéssemos, ou intuíssemos, o que se passava, mas intuindo também que não podíamos tocar no tema, verbalizar o encanto, pois isso significaria quebrar aquele mesmo encanto, arruinar os instantes do enleio coletivo.

Claro que trocávamos palavras entre nós. Afinal a conversa, a voz do outro, é alimento necessário para o enleio; na verdade, é todo um conjunto de falas, olhares e gestos, que deve emanar de cada um rumo ao outro, um jogo de pulsações, um vaivém de ininterrupto mas delicado magnetismo. Mas não eram propriamente conversas, com frases completas, íntegras, pois também uma conversa normal, articulada, por mais que tratasse de profundo ou poético assunto, quebraria ou falsearia o enleio e seu encanto; assim, nossas falas estavam mais para fragmentos, murmúrios a servirem de alimento ao momento.

González, por óbvio, era quem menos falava, ou murmurava. Eu sentia que sua consciência ainda pairava um pouco acima de nós e do próprio lugar; na verdade pairava muito, muitíssimo acima – como se uma parte de sua percepção ainda vagasse lá, nas bordas do Cosmos, a acompanhar o próprio Universo em sua infinda viagem, na sua ininterrupta luta contra o vazio e o nada que o cercam de todos os lados.

                                 *

Quem vive o enleio nunca sabe como e quando ele vai acabar. Mas sabe que ele não irá durar para sempre, sabe que é momento por demais raro e delicado para se demorar muito em nós. Por isso o todo cuidado. Para que dure o mais possível, ou pelo menos para que não se vá antes de seu tempo próprio. Mas não é apenas por isso o todo cuidado com o enleio. Pois que o total cuidado é parte do próprio enleio, é convite e exigência que nos são feitos por ele, em sua raridade e brevidade, delicadeza e profundidade.

A janela. A amarela. A “jinela”.

Mas em algum momento o enleio tem que findar, o encanto tem que se quebrar, o Sagrado tem que partir carregando consigo o seu silêncio. Ou talvez nós é que não suportemos tamanha delicadeza em nossa presença. Ou por temer que a presença do enleio se desfaça a qualquer momento. Ou por não crer que seja possível que dure mais alguns instantes aquela doce e pacificada efusão de nós com o tudo através daquela presença do enleio. Ou por não nos acharmos merecedores da continuidade de tal presença e efusão no meio de nós, bem no dentro de nós, a desatar os nossos intérminos nós.

A janela. A amarela. A “jinela”.

Fato é que, em algum momento, algum de nós comete um gesto, alteia a voz, introduz um assunto banal. Fato é que, em algum momento, algum de nós abre a brecha para que o enleio escape de nós, interrompa-se, devolvendo-nos à nossa pobre, mas tranquilizadora normalidade.

E no caso, melhor, no ocaso daquele enleio coletivo, o primeiro e único do qual eu participei até hoje, quem abriu a brecha, melhor, quem abriu a janela, foi Olavo. Tinha que sê-lo. Se bem que daquela feita não houve malfeito intencional de sua parte, nem haveria por que, já que em estado de graça ali se estava. Em verdade, em verdade, Aloísio é quem lhe pedira para fazer o gesto de abrir a ampla janela de madeira, pintada de amarelo, que dava para um quintal inclinado. Alegara que Nicanor o chamava, o que se comprovou um equívoco depois que Olavo olhara para fora.

— Sua “jinela” amarela, né, seu Aloísio... - Olavo, ao retornar.

Pronto, fora-se o encanto. Aquilo fora o bastante para tal, aquela fala tão sem propósito, assunto tão sem ligação com o momento; mesmo que não tivesse sido intencional aquele tom brincalhão de Olavo. Quanto ao equívoco de Aloísio, não parecera simulá-lo, a inventar um motivo qualquer para quebrar o encanto.

Tanto que ele respondeu ainda de forma suave, murmurante, no mesmo diapasão das conversas anteriores, ou melhor, dos fragmentos de conversas anteriores, não deixando que partisse dele o término do enleio:

— É isso mesmo, seu Olavo... é assim que o povo mineiro ainda fala... às vezes, por aí afora...

Mas era já tarde, findara-se em definitivo a comunhão, a presença do Mistério se fora. Nada a fazer. De nada adiantaria acusar Olavo de sabotar o instante, para pôr fim àqueles momentos, antes que alguém o fizesse, exatamente por temer sua fragilidade, por desconfiar de sua solidez; pois de todos nós certamente ele era o mais cético e o mais descrente, o menos experimentado naquelas vivências.

Nada a fazer, ninguém a acusar, já era tarde, de uma forma ou de outra o enleio sempre se vai, talvez nos seja impossível sustentá-lo indefinidamente, talvez nem mesmo González o suportasse e o amparasse por longlongo tempo.

Embora discreta, a presença González era a fonte irradiadora do enleio. E, por perceber que o enleio já tinha cumprido a sua tarefa, já tinha tido a sua duração própria, ele entendeu por bem decretar, formalizar o seu término, instaurando entre nós uma conversa mais concreta, terra-a-terra, na qual havia a urgência de decisões, acertos, em relação à viagem até o Túnel, na manhã seguinte. Foi preciso telefonar a Nicanor, acertar horário, local do encontro.

E, por fim, decidiu-se que deveríamos dormir, abandonando a pretensão de dar uma volta até a pracinha, para quem sabe alguma bebida, afinal já passavam de dez horas, e nos levantaríamos antes das seis.

Pacificados, sem ninguém a sequer tocar no assunto do enleio - não se fala levianamente o nome do Sagrado, pois tentar obsessivamente dar-lhe nomes humanos é o mesmo que aprisioná-lo, corroer a sua força, a sua pureza e a sua estranheza.

De formas que dormir fomos, pacificados. Embora cansados de tantas andanças. Casa grande, antiga, exatos quatro quartos. Assim, a cada qual o seu. Aloísio fizera questão de proporcionar-nos conforto e privacidade.

 

06 - o túnel, no útero da terra

Manhã seguinte, café ainda mais cedo e, já embebidos de café e agora de fresca poesia, a alguma andança pelas vizinhanças do centro de Passa-Quatro, a respirar a sua atmosfera; agora a claro dia, embora cerrada e abençoadamente enevoado.

A propósito, embora obviamente desnecessário: sem chance de comparação com o café da manhã do hotel em Aparecida do Norte. O major acordara bem cedinho, antes das cinco, como era seu feitio, e tivera tempo de preparar, entre vários outros quitutes, um pastel de angu digno lá da nossa região. Aloísio servira durante algum tempo na região de Ouro Preto, e lá dona Eunice aprendera as manhas para encontrar o ponto certo, para a massa de fubá ofertar-nos a devida cremosidade e crocância.

Mas o breve passeio pela cidade tinha se dado somente em razão de termos que andar até uma pracinha, aonde Nicanor nos esperava - bem cedo fora buscar parentes em alguma roça, a resolver assuntos de aposentadoria.

De formas que, fomos enfurnados no frio e no nevoeiro espesso, mas esvoaçante. Que, sempre galante em começos de manhãs (a comer com elas odores e frescores), cumprimentava-nos de perto, roçava-nos caricioso, mas sempre a nos abrir passagem. Foi como prêmio e convite, prévia do passeio que faríamos na manhã seguinte pelas ruas da cidade.

Subíamos novamente a serra, rumo ao túnel. Havíamos demorado um pouco a vagar pelas redondezas, pois Aloísio e Nicanor fizeram questão de levar González a antigos conhecidos, amizades que o espanhol fizera durante suas visitas passadas – taxistas, feirantes, comerciantes, até o padre, que missa iria começar. Por pouco, não arrastou González para dentro da igreja, somente liberando-o para o nosso passeio com o compromisso de que ele fosse à missa à noite e, empós, uma visita à casa paroquial. Pressenti que seria na casa de padre Joel o desfecho da fala político-metafísica de González, e também intuí que seria um fecho com verdadeira chave de ouro.

Portanto, quando saíamos de Passa-Quatro, o nevoeiro já se dissipava do solo, afastava-se de nós, despedindo-se - seus enfumaçados sussurros. Mas, já no carro, ainda o víamos, a flutuar e a acenar-nos de altaneiros ares, como se a dizer que nos aguardava lá nas alturas e entranhuras do túnel. Mas estava mesmo frio, mesmo dentro em carro encolhia-se o corpo, Aloísio não exagerara.

Um pouco antes de chegar ao túnel, Aloísio nos mostrou um posto de gasolina, com um restaurante e churrascaria, ao qual eles sempre vinham, quando González em visita. Intimou-nos a conhecer o lugar, afiançando que, além do aconchego e de apetitoso churrasco, da varanda traseira teríamos uma gratificante vista de morros, matas, céus – da cidade e das regiões vizinha se nunca sozinhas de Passa-Quatro.

Mais à frente, e já bem na crista da Serra, havia uma lanchonete, com também restaurante, uma parada própria para turistas, certamente em razão da vista espetacular que se tinha lá do alto e, claro, para atender também às centenas de pessoas que vinham conhecer o Túnel da Revolução. Foi na sua ampla área de terra batida que Nicanor estacionou o carro. Dali até o Túnel uma razoável descida, a pé, por estradinhas e trilhas.

                                *

O retorno do nevoeiro. Poucos minutos após a descida, iniciada com decidida disposição. Bem que a neblina havia nos avisado, ao acenar das alturas. Envolvia-nos, tal como faziam as árvores e arbustos que ladeavam a estradinha, confundiam-se a sua delicada brancura, ainda mais firme do que quando em Passa-Quatro, e os verdes recém-amanhecidos, parecendo sisudos por terem sido envoltos logo de manhã pela álgida alvura que lhes obstruía o quente amarelo do sol. Mas era com certeza uma sisudez aparente, pois que camaradas de longa, longuíssima data, as árvores, as encostas, os ventos e o nevoeiro.

Caminhamos bom trecho, até darmos numa espécie de extensa esplanada que ficava na boca do famoso Túnel. Nessa área haviam sido deixados alguns resquícios da conhecida Batalha entre mineiros e paulistas; não me lembro bem, mas creio que eram balas de canhão, de fuzis, talvez alguma placa de homenagem aos mortos. De fato, não me lembro, pois que a partir dali a minha atenção e a minha memória fixaram-se totalmente no Túnel propriamente dito.

Pois, ao adentrarmo-lo enfim, foi deveras como um mergulho no tempo. Não no tempo histórico, ou físico, o tempo da Batalha de 32. Mas verdadeiramente um túnel do tempo. Não é um mero e tolo trocadilho. Sim, à medida que caminhávamos, tropeçando nos travessões, escorregando dos trilhos, mesmo com todo o cuidado, alertados por Aloísio, eu tinha a impressão de que, aos poucos, adentrávamos uma dimensão diferente daquele mundo que ficara lá fora.

Claro que a sensação de isolamento do mundo exterior, própria de um túnel de quase um quilômetro de extensão, era densamente reforçada pelo nevoeiro, que acampara na entrada, praticamente cerrando-a como espessa muralha. No começo da caminhada, uma que outra inevitável conversa acerca da Batalha. Cada um tentando imaginar o ambiente de confronto, tiros, explosões, frio intenso, fome, avanços, recuos.

E bem lembrada foi também a suposta participação de Guimarães Rosa, na condição de capitão médico das forças de Minas; que, na verdade, segundo averiguações de González e Aloísio nunca teria ocorrido, pois, à época da Batalha, ele teria ficado aquartelado, por motivos quaisquer de logística militar, exatamente na nossa Viçosa. Tudo isso foi mais a título de introdução, ou ambientação. Mas todos esses temas foram perdendo sua importância, nem mesmo as militares aventuras, do genial e mais completo escritor do país, continuaram a ocupar nossas conversas.

Alguma coisa de mais profundo se instalava aos poucos no meio de nós, em meio àquele isolado e silenciado mundo aninhado dentro do próprio Túnel. Como se houvesse uma mensagem a nos ser passada, tanto por parte daquele útero da terra, aberto em forma de túnel, quanto por parte do evanescente guardião nevoeiro a fechar as duas entradas, como se para nos proteger e isolar do mundo exterior, para melhor podermos ouvir a estranheza e a doçura dos sussurros brotados do Túnel - de suas paredes gotejantes, de suas pedras crocantes, de seus ecos murmuriantes.

Parávamos, olhávamos às vezes um para o outro, depois cada um mirava onde bem entendesse, um olhava melancólico para o chão, as pedras e os trilhos, outro fitava sequioso a lonjura, intentando ver a saída – a famosa luz no fim do túnel – tocávamos delicada, densa e demoradamente as frias, úmidas e ásperas paredes.

Depois recomeçávamos, às vezes em fila, às vezes meio amontoados. O propósito, por óbvio, era chegar até a saída – ou até a entrada do lado de Minas – e depois retornar para o lado no qual entráramos. Mas nem isso parecia mais importar. Estávamos nos trilhos por estar, para vagar no útero da terra, andávamos por lá por andar, para navegar naquela dimensão singular ofertada e protegida pelo nevoeiro.

Então, íamos e vínhamos pela metade final do túnel, sem disposição ou coragem para chegar até o outro lado, pois aí teríamos que dar um rumo objetivo ao vaivém daquela travessia subterrânea, transformando-a num mero passeio. Como se não quiséssemos quebrar aquela espécie de encanto, ou de convocação.

Por isso evitávamos, também a todo custo, uma incômoda proximidade com alguns turistas, que, apesar da hora, já perambulavam por ali. Os de sempre, com suas exultações, aquela típica, histérica e ruidosa exibição de estar vivenciando uma comoção autêntica, eivada de cultura ou profundidade. Aproximavam-se, cumprimentavam, imaginando encontrar indivíduos tais quais eles. Educadamente trocávamos algumas palavras, e deixávamos o clima esfriar - literalmente, ali no meio do Túnel – até que percebiam, com constrangimento, petulância ou indiferença, que nada tínhamos em comum com os seus passeios e entusiasmos. Que nos encontrávamos, também literalmente, podia-se dizer, numa outra dimensão.

Então, continuávamos indo e vindo pela metade final do túnel, sem disposição ou coragem para chegar até o outro lado. Por fim, aquele gotejamento, aquela luz penumbrosa-subterrânea, aquela paisagem lembrando inutilidade e ruínas, aquilo tudo acabou me remetendo às paisagens do Stalker, dos irmãos Strugátski, e filmado por Tarkovsky. Verbalizei-o para o grupo. Dito e feito, e então um efeito - de fato e falado.

Mas, surpreendentemente, não veio da boca de González a famosa citação do poema, quando os exploradores estão visitando clandestinamente a área proibida. Veio de Olavo a lembrança dos versos, recitado pelo melancólico guia dos exploradores, lá no filme:

                                quando o homem nasce

é fraco e flexível

                                quando morre

é impassível e duro

                                quando uma árvore nasce

é tenra e flexível

                                quando se torna seca e dura

ela morre

                                a dureza e a força

são atributos da morte

                                a flexibilidade e a fraqueza

são a frescura do ser

                                por isso, quem endurece

nunca vencerá…

Olavo o disse. Sim, disso tinha, às vezes, ensimesmices súbitas, sem os acintes e tolices de sempre. Encostado à fria parede do Túnel, sem nos fitar, a mirar ora a alta abóbada, ora seu plano e duro solo. Acho que até mesmo Aloísio entendeu do que se tratava. Devia ter lá diversificadas indicações de leitura e filmes, conduzidas por González. Senti isso pelo jeito como olhava para o espanhol, de um jeito meio compungido, meio respeitoso, meio solidário. Já que ambos sabiam há muito que, de nós quatro, eles já estavam bem mais próximos do tempo, da dureza e da secura finais de suas próprias árvores.

E nossa vagandança por aquele útero interior - perdoe-se o pleonasmo, mais um - se já reforçava a impressão de retorno à terra, ao escuro, à imobilidade, a minha lembrança do Stalker, seguida da fala de Olavo, então, somente fizeram por acentuar a sombria densidade do momento.

Mas nem de longe eram momentos de dores, temores e tremores. Mas talvez de estupores e mesmo de louvores. Por óbvio, louvávamos em primeiro ao navegante nevoeiro, nosso fiel cavaleiro alado, ancestral habitante da Mantiqueira. Sim, com sua poética-evanescente insistência em nos acompanhar desde as ruas e solos de Passa-Quatro, alçando-se depois às serranias verde-orvalhadas e às encostas das estradas umiverdecidas, tudo somente para acompanhar nossos passos, nossos olhos e nossa alma, e depois se postar nas duas entradas do Túnel. Sim, para nos blindar do mundo lá fora, para nos induzir a inspirar a respirar o útero do mundo lá dentro.

Sim, havia clara mensagem tanto advinda da vaporosa névoa quanto do duro solo do útero. Como se o útero nos convidasse a uma mais profunda e respeitosa percepção da presença do Ser em derredor de nós, e de nós em meio e dentro dele.

Sim, aceitávamos e assumíamos a magia, a fantasia, ou fosse lá o que fosse, deixávamos nos transportar para um ar fora do tempo, do mundo concreto, objetivo; deixávamos nos deslizar suavemente para aquela espécie de território transcendente, que, aos desavisados, poderia parecer uma terra de conto de fadas para nossas almas e consciências, mas que era algo mais autêntico, próprio da Origem, algo muito além do que meras fantasias, mitologias ou lendas.

Mas se claros e quase palpáveis eram o convite ou a oferenda, também o eram discretos, silentes, como tudo o mais que nos advém dos recantos recônditos do Ser e dos seus entes.

Portanto, não nos inquietávamos com falas, falatórios e reflexões, apenas vagávamos aquela dança a lá e cá. Nem mesmo González se apossava do espaço uterino com suas sempre magnéticas falas, nem Olavo com suas corrosivas e autodegradantes deboches, nem Aloísio, com suas concisas e singulares mineirices. Ninguém se sentia impelido a confrontar o ar doce-frio e penumbroso-silente do longo útero-túnel.

Muito menos de minha parte. No máximo, pensei em comentar, discretamente, que o que ali se passava talvez direta ligação houvesse com o enlevo da noite anterior. Claro que um ou outro encadeamento obscuro deveria ter ocorrido. Mas não cometi tal leviandade. Mesmo porque os próprios instantes da noite anterior não haviam sido verbalizados, nem mesmo ali no meio do túnel.

Enfim, cada um à sua maneira agradeceu e louvou, reconheceu e fruiu da oferenda proporcionada pelo nevoeiro e pelo túnel, e, aos poucos, sem palavras ou gestos explícitos, fomos findando aos poucos a jornada, retornando para a boca do túnel, mas lentamente, sem pressa. Volta e meia parando, revendo paredes, trilhos, penumbras, ouvindo gotejamentos, tocando e sentindo com firmeza solo e cascalhos; enfim, retomando e fixando na consciência, com grata e futura nostalgia, o percurso e a andança naquele trajeto dançarino, em meio ao uterino ente ofertado pelo Sagrado e pelo Ser.

                                *

Na volta do prodigioso mergulho no útero do tempo e do mundo, não direto para Passa-Quatro, e sim a passar antes na Churrascaria, mas passagem não ainda para beber e almoçar, mais para perpassar os olhares pela vista incensada por González e Aloísio.

E também para tomar café, café com leite, bolos e pastéis, tudo também devidamente incensado por eles dois. E tudo correspondeu à expectativas, tanto o reforço no café da manhã, quanto a paisagem que se oferecia – ondulada, espraiada e entremeadas de verdes e colinas, a aninhar a simpática cidade de Aloísio. Estávamos em festa por qualquer dá lá aquela palha, desde que chegáramos à cidade.

Mas planos se faziam necessários para rumarmos às cidades vizinhas. Foi nisso que gastamos o tempo passado na Churrascaria. Quando e onde visitar primeiro. Sugeriu Aloísio, e acatado foi, que se viajasse no outro - dia, bem ao cedinho. Em primeiro, Itamonte, o Parque do Itatiaia e depois descer pela famosa Volta dos Oitenta:

— Então ‘té a gente chegar a Alagoa, terrinha boa.

Programa extenso, demorado e que demandaria disposição e frescor da cabeça e do corpo – e, claro, da boca e do paladar, para lá na pequena Alagoa experimentar queijos, que tinham ganho nome entre o povo das redondezas, mormente o queijo parmesão, que ainda não era iguaria encontradiça nas outras regiões de Minas, apenas pelos lados da Mantiqueira e Sul do estado.

Inviável fazê-lo naquele mesmo dia, ainda que não fossem onze da manhã.

Despedimo-nos de Aloísio e Nicanor, antes mesmo da Praça da Matriz, e fomos perambular pelas ruas; os dois passariam em mercados, para pequenas compras de almoço que alguma cozinheira aguardava.

— Então ‘té o almoço, ‘té o almoço, sem dilatar e sem muito bar, hein, compadre, hein cambada...

Sim, que sim, nada de deselegantes, demoradas e juvenis saideiras nalgum aconchego de mineiro boteco de boa conversa, que eu e Olavo supúnhamos aos montes, enquanto nós três caminhávamos e vistoriávamos.

Sim, sim, dava pra ser ver que se se faziam promissores os passeios pela cidade, os noturnos, de alma silenciosa, e os bem matinais, aureolados de névoas. Um pecado, um pecado, aqueles passeios ainda não terem sido feitos, uma falha ou ausência nossa contra o Ser e os entes – diria González.

Por óbvio, que não se podia nem mesmo comparar com a minha preciosa-inigualável Ouro Preto, mas Passa-Quatro, com seu numeroso, espraiado e bem conservado casario, lembrava, sim, um pouco da minha mineral-ancestral cidade, que preservava o ouro dos tempos e da história – com tudo o que havia de humano e desumano em qualquer história ou cidade, claro. E, em Passa-Quatro, havia a bem-vinda vantagem de não termos que subir e descer morros e mais morros e ladeiras e escadarias. Era tudo quase pura planura.

Mas foi breve reconhecimento de terreno, mais andando ao longo da antiga ferrovia; mirando e admirando uma esplanada, uma límpida vastura que havia entre cá, o centro, e o casario lá pelos lados da rodovia, com a Mantiqueira ao fundo.

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