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Não ia te dizer
Nascentes e Epifanias
parte 01
epifanias
Índice
01 tristeza, no colo da memória.......04
02 fabiana, odilon, viçosenses...........12
03 jandira................................................23
04 gonzález, lázaro, olavo, u., ilídio 27
05 fuga..................................................... 37
06 gilberto, o correto...........................41
07 nua, toda tua.................................... 46
08 paraná, fatal pa***uat................... 50
09 o galo e a raposinha.......................57
10 um rio é um rio é um rio
é um riso, é um risco..................... 61
11 flutuante............................................. 65
12 memória da tua, nua......... ............ 69
13 nudezes, vozes.................................. 72
14 camisolas, camisas-de-força......... 78
15 no topo do mundo
e agora josés?.....................................83
16 a vida como um livro..................... 86
17 no topo do tempo
no turbilhão do gualaxo..................90
18 eu e lázaro, laços, nós..................... 96
19 chegada, magia................................ 112
20 tira-gosto e filosofia........................127
21 as nascentes e o estrangeiro
os espantos........................................138
22 rios que correm juntos..................148
23 não ia te dizer o meu nome.........155
01 - tristeza, no colo da memória
Sim, que segunda-feira não é dia de se fazer muita coisa, não é dia de inventar moda; não é então dia de ir pro Odilon, mesmo porque hoje o salão dele fica quase vazio. As pessoas vão lá mais é pra conversar com ele. A sua voz é tão boa de se ouvir, o seu jeito é tão manso, nem parece dono de cabaré, que funciona numa região onde anos atrás houve um famoso puteiro, aqui em Ponte Nova. E ele procura saber de nossas vidas com tanto carinho, que a gente se embala em sua voz e em sua companhia e se esquece da vida. Tal como acontece quando estou em companhia do espanhol González.
Além disso, há muito tempo eu consegui a disciplina de não sair de casa pelo menos três noites por semana: segunda, quarta e quinta. Portanto, não sairei hoje.
Mas vem essa música: gorjeia de lá de tão longe no tempo, mas na verdade é de lá do Odilon, eu sei. Agora, mais de dez horas; além de eu não pegar no sono, agora acorda de lá dentro de mim aquela vontade.
Mas não é nada disso, não acordo com a vontade de ter de novo aquela ofegação de mulher, principalmente aqueles desassossegos que tive com nós dois, eu e Milton.
E bem junto do pé de mamão, eu bem na sua mão, meu bem, molhadinha no molhadinho do sereno. Eu que nem uma arvinha, uma plantinha de carne verde-novinha, verde uva verde que ia e vinha, sugada, chupada, lambida, pelas suas tantas bocas. Tanta vontade de ter tido contigo o que nós dois acabamos por não viver.
O que me acorda mesmo é a vontade de sentir um pouco dessa tristeza, tão minha conhecida de umas semanas para cá, desde que reencontrei Milton. Essa tristeza que, às vezes, do nada me faz chorar - nas primeiras vezes apenas leve, fraquinha, e agora cada dia mais insistente. A tristeza de lembrar o que não aconteceu, o que por minha causa simplesmente não foi, e não veio ao mundo. A outra vida, a que ficou sem vida. Por minha culpa, por minha tão grande culpa. Não, não estou falando de uma criança abortada, ou coisas assim. Se bem que poderia ter havido também um filho, uma menina?
Nossa, é mesmo Martinha quem canta. Meu Deus, como a tristeza às vezes pode ser bonita, e como a boniteza pode ser tão triste:
vou deitar no seu colo
e pedir pra você me contar...
Essa música, gente, não fala de amor entre homem e mulher, acho que não é não, pelo que entendo Martinha fala é para o pai dela. Mas uma música boa, de verdade, é assim mesmo: mesmo que ela fale de uma coisa, ela ajuda ou deixa a gente sentir coisas diferentes, coisas da vida de cada um.
e pedir pra você me contar
uma história que a sua memória...
Ah, o tempo, Milton, o tempo não perdoa quem não sabe se deitar no colo certo, na hora certa. E é essa a tristeza que apareceu para mim, sem mais nem menos, desde aquele churrasco no campo do Primeiro de Maio, quando te reencontrei. Eu não sabia que a gente podia carregar sentimentos escondidos assim por tanto tempo. Pior ainda, a gente nem desconfia que tem sentimentos tão fortes assim escondidos dentro da gente. E de repente...
*
Com a morte de meu marido, vim embora do Paraná, e passei um breve tempo na minha cidade, São Miguel, próximo a Viçosa, até que fiz concurso para a rede estadual de educação, e fui designada aqui para Ponte Nova. A idéia era voltar para Viçosa e lecionar lá, assim que surgisse a oportunidade de uma transferência. Mas trabalhei apenas o tempo exigido por lei, o estágio probatório, e pedi uma licença sem remuneração; a pensão pela morte de Gilberto é suficiente para tocar a vida.
E fui ficando por aqui, fazendo amizades, adiando minha volta. Ainda mais depois que reencontrei Jandira, minha conterrânea, e conheci Fabiana, de Viçosa. E como sempre vêm amigos e conhecidos de Viçosa e região, como Juca, o vendedor Arildo, o filósofo González e seus amigos Olavo, Murilo Maciel, Lázaro (esse último é, digamos, meu amigo íntimo) e outros, fui ampliando meu círculo e me identificando cada vez mais com a minha vidinha meio boêmia aqui. Vim para cá quando tinha trinta e três anos, e hoje estou com trinta e cinco.
Todos gostam muito do salão do Odilon e de outros bares – aqui no Centro, no Triângulo, em Palmeiras. E, no caso dos homens, claro que gostam também dos bares e botecos em volta dos antigos puteiros, para relembrar com mais intensidade os tempos dos bordéis da Beira-Linha e do 104. Mas o principal atrativo é mesmo Odilon, com seu salão. Mesmo porque, Odilon fez muitas amizades em Viçosa, nos anos em que viveu e trabalhou num puteiro de lá.
É como se todas essas pessoas precisassem sair de Viçosa de vez em quando, como se sentissem falta de uma boemia mais antiga, ou mais preservada. Não que a cidade não tenha a sua vida boêmia, lá funciona até hoje o Braseiro, casa noturna de tradição, tem o Zé Bóia, famoso conjunto de serestas, tem seus bares, botecos, seus boêmios.
Mas acho que Viçosa, com a estupidez da ditadura, foi muito tomada pela boemia universitária, escolarizada, ganhou ares de cidade rebelde e politizada, amalucada e ousada, influenciada pela contracultura dos anos 70. E isso não apenas com relação aos estudantes de fora, mas também com os próprios nativos, como são chamados os viçosenses. Acho que a personalidade da cidade foi, não digo totalmente, mas pelo menos um pouco engolida pela postura dos universitários, ou melhor, pelo fato de sediar uma universidade tão famosa; enfim, a cidade acabou se tornando mais cosmopolita do que suas vizinhas Ubá, Rio Branco, Ponte Nova, e isso de certa forma deve ter sufocado um pouco a vida boêmia típica de interior.
Engraçado, isso não aconteceu com Ouro Preto, terra de meu namorado Lázaro, que fica tão perto daqui e de Viçosa. Não falo da vida boêmia de lá, que não conheço, eu me refiro é à questão da invasão de novos costumes e mentalidades. Talvez porque a universidade de lá não seja tão grandiosa, e também pelo fato de a influência dos estudantes ser bastante neutralizada pela presença de turistas do mundo inteiro; quer dizer, o seu lado cosmopolita é menos determinado pela juventude universitária da cidade do que pelos turistas, andarilhos e aventureiros. Se bem que não faz sentido falar em cidade cosmopolita quando se trata de Ouro Preto, pois é uma cidade completamente diferente, um lugar único no Brasil, ela parece suspensa no tempo, nem estudantes nem turistas nem artistas conseguem mudar a sua alma. Ela não precisa disso.
Por tudo isso é que acabei ficando por aqui, sem muito objetivo na vida, e sem querer muitas preocupações. Não sei quando voltarei a lecionar, nem sei por quanto tempo vou continuar aqui em Ponte Nova. Pois, depois que conheci Lázaro e seu grupo de amigos, liderados pelo filósofo espanhol González, aí é que me senti verdadeiramente em casa. São todos ligados ou à Literatura ou à Filosofia, e o convívio com eles tem, gradualmente, me levado a colocar em prática a minha antiga sede de escrever, de conviver com as palavras. Tenho escrito várias cenas, descrição de personagens, todas relacionadas ao Bar do Odilon, mas ainda não mostrei nada a eles.
Apesar de minhas adolescentes e eróticas aventuras com Milton, eu nunca fui o tipo da garota extrovertida, expansiva, coisas assim. Ao contrário, a partir dos quatorze, quinze anos, sei lá, fui me tornando recolhida, silenciosa. Até chegar a um ponto sem volta, em que assumi a minha estranheza e me tornei definitivamente uma moça classificada como esquisita - uma pessoa cismada, como ainda dizem lá na roça.
Mas isso não me impedia de levar a vida como a maioria das pessoas, de ter uma convivência normal com a minha família, embora procurasse preservar e afirmar o meu recolhimento, o meu lado ‘esquisito’. E mesmo não sendo fã de bailes e de muitas festas, nem tivesse muitas amigas, eu me esforçava o suficiente para não me tornar uma pessoa isolada pelos colegas no colégio.
Não saberia dizer quando e como começou essa mudança em mim, ou como e quando ocorreu esse despertar de minha personalidade, esse jorrar do meu Próprio, como diria o filósofo González – treze, quatorze anos?
Sei que, antes ou depois dessa época, começava a explorar o fascinante mundo dos livros, e já tinha decidido que queria fazer Letras, na UFV.
Para dizer a verdade, um pouco antes de minhas singulares vivências com Milton, eu já tinha até mesmo escrito alguns textos metidos a literários, coisinhas bobas: descrição de pessoas, lugares e acontecimentos, como o encantamento com uma enchente, a atmosfera de um velório, o mágico enfeite das cruzes nas casas, no Dia de Santa Cruz, todo 03 de maio. Mas falarei dos meus escritos, com mais detalhes, em outra ocasião, bem como de González e do seu grupo.
*
E, agora, aparece Milton, insistindo que a gente pode e deve resgatar o nosso pouco que foi vivido para, quem sabe, dar vida ao nosso muito que não foi vivido. Agora, então, é que não sei mesmo qual será o meu destino, toda essa tristeza das últimas semanas parece me dizer que, de alguma forma, o aparecimento de Milton irá influenciar minha vida. Claro que nem penso em casamento ou coisa assim, acho que é mais uma questão de ter que passar por Milton para poder resolver o rumo da minha estrada. Até mesmo para poder decidir em paz até aonde eu e meu amigo Lázaro seguiremos com nossa estrada.
Milton é alto, bem mais do que eu, que sou de altura mediana, mais para esbelta e magra; não tenho tendência para engordar, mas não sou magrela, sou, digamos, cheinha o suficiente.
Lembro-me que, quando criança, tinha lá meus dez anos e ele dezessete, a minha infantil fantasia associava o seu nome com a sua altura, e eu ficava cismando se era o nome que fazia a pessoa crescer, ou se os pais da criança tinham um jeito de saber que ela cresceria muito e, então, davam-lhe um nome para combinar, como no caso de M-i-l-t-o-n; eu vivia soletrando o seu nome, meio sonhadora, acho que naquela idade eu já tinha uma paixonite por ele. E olha só a aflitiva confusão amorosa que foi gerada pela fantasia de menina; como a vida é surpreendente, a gente não tem a menor idéia do resultado das atitudes, escolhas e gestos, lá atrás.
Cabelo meio cacheado, ao contrário de mim que tenho cabelo meio liso, meio emaranhado; pele quase branquela, ao contrário de mim, que sou morena clara. Em cima de sua moto, no peito a camisa toda aberta, mormente em dias de mormaço e calor, voz tranqüila, com aquele mineirês tão forte e arraigado, que a gente até pensa que é artificial, forçado, mas que é de fato sincero, um jeito de falar que vem de dentro mesmo das pessoas.
Para variar, também o contrário de mim, que já me esforçava, desde mocinha, para aprender a falar como o pessoal da cidade. Lembro que, não somente Milton, mas muitos outros ficavam debochando de mim, por eu falar algumas palavras diferentes do pessoal da roça, como sol ao invés de ‘sole”, vassoura ao invés de “bassora”, estômago no lugar de ‘estambo” e por aí afora.
Bom, esse Milton que descrevi é agora o que mais me vem à memória, talvez porque ele se vestisse, falasse e andasse exatamente assim, no dia em que pela primeira vez me agarrou suavemente pelo braço, me puxou e me beijou, espalmando levemente uma de suas mãos sobre um de meus empinados seios sem sutiã, na cozinha da casa de sua irmã, de tarde, ela e o marido no paiol, descascando espigas de milho. E, logo depois desse beijo roubado, eu concordei, silenciosa, atrapalhada e rosto avermelhado, em me encontrar com ele, naquela semana mesmo, à noitinha, lá no bambuzal do São Miguel, divisa de nossas terras.
E eu subo, súbito como que flutuo, o chão enche-se de ar, com o seu braço e o seu abraço colando-me definitivamente em você, até parece que o seu laço começa a me prender de leve na sua vida, mas depois a úmida e quente boca selando com força a sua vontade no meu desejo, fazendo-me enfim conhecer o desejo, eu num instante aprendendo que o desejo sempre quer mais, quer crescer, quer meu corpo cada vez mais puxado pelo seu corpo, e quer que meu seio seja tocado com cada vez mais força pelas suas mãos ainda cautelosas, e que minha boca seja sempre inundada pela serpenteante umidade da sua, e é por isso que sim, que eu digo que concordo, sim, com a gente se encontrar noutro dia de noitinha, sem ter a menor idéia do que isso significa, quer dizer, sem nem saber que isso significa coisas diferentes para cada um de nós, para a mocinha de dezessete anos que está sendo beijada e acariciada pela primeira vez e para o rapaz sete anos mais velho, experimentado em sarros, amassos e paqueras com as meninas da cidade.
Evidente que, para me agarrar com tanta segurança, já tinha visto que eu lhe dava muita bola, meus olhares melosos, a atenção que eu lhe dava quando ele falava qualquer coisa. Com certeza que, no começo, ele me viu apenas como mais uma de suas inúmeras admiradoras, mas uma admiradora tímida, indecisa e inexperiente, meio esquisita, que precisava de um certo estímulo para que as coisas rolassem “nos conformes”, conforme se dizia naqueles tempos.
Aquela minha inexperiência deve tê-lo excitado ainda mais. Afinal, na sua cabeça de rapaz famoso por suas paqueras, nada mais encorajador do que ganhar e, quem sabe, ser o primeiro na vida da garota, e então poder informar ao seu bando mais essa preciosa conquista. Essa era a nobre mentalidade masculina-juvenil da época, não sei até onde essas necessidades de auto-afirmação ainda persistem, e nem me dizem mais respeito.
Óbvio que não podemos deixar, de forma alguma, que a coisa ultrapasse os excitantes limites do jogo erótico-amoroso, não dá para deixar o macho nos tratar apenas como fêmeas à disposição de sua melosa sedução, fazer de nós, para o resto da vida, apenas sua caça desejável, no eterno jogo comandado pelas ancestrais regras da biologia e da sociedade.
Mas confesso que não me senti nem um pouco constrangida, em assumir aquela personagem de mocinha prestes a ser seduzida, eu me excitei ao me sentir na pele de jovem e desejável caça, a atrair as mãos e o desejo de meu caçador matuto e tolinho. Pois, sem entrar de corpo e alma nesse jogo genético e ancestral, nosso primeiro desejo e nosso primeiro encontro amoroso perdem muito de sua ansiosa excitação, que vem da entrega da fêmea ao macho por ela escolhido e aceito. O resto é gritaria sem poesia e sem aceitação de nossa condição psíquica e biológica.
Por outro lado, na minha cabeça de mocinha que queria se tornar uma mulher diplomada, independente e segura de si, claro que resisti a esse papel de fêmea. E, hoje, vejo o tamanho do erro por ter resistido tanto a esse jogo erótico, saudável e necessário para nós, naquele momento.
E, da minha recusa a esse papel de fêmea disponível, Milton ficou sabendo de maneira muito rápida, intensa; uma recusa dolorosa para nós dois.
Uma recusa que faz brotar, escondida dentro de mim, essa estranha tristeza que agora despertou violentamente, e tem me consumido nas últimas semanas; e que certamente somente irá se cumprir, se esgotar e se acalmar, quando eu mais Milton (como também ainda dizem na roça) nos encontrarmos e finalmente deixarmos acontecer, sem mais culpas, desculpas e disputas, o jogo erótico-amoroso, que foi interrompido lá atrás, por orgulhos e equívocos que muitas vezes ocorrem na juventude. Ah, Martinha, não faça assim:
vou deitar no seu colo
e pedir pra você me contar
uma história que a sua memória
te faça voar...
02 - fabiana, odilon, viçosenses
Fabiana no telefone, com toda certeza. Mas já tem muitas semanas que ela parou de ficar insistindo comigo nas segundas, para eu ir com ela pro salão. Ela liga é pra saber de minha tristeza.
- Melhorou a tal dor de cabeça, perua?
- Mais pra melhor do que pra pior.
- Tomou?
- Beber? De jeito nenhum - meus olhos se fixavam na gaveta do guarda-roupa pequeno, no quarto do meio, onde guardava fotos.
- Tô falando de Cibalena, viúva piranha...
- Ah, uma de manhã e outra agora de tardinha. Acho que vai passar antes d'eu dormir – meus olhos já sabiam que meu coração havia convencido a mente: sim, eu iria mexer nalgumas fotos antigas guardadas na gaveta, mais uma vez; não havia foto nenhuma de Milton, mas muitas me remetiam àquele tempo.
É, eu reclamei com Fabiana sobre a dor de cabeça, hoje de manhã cedinho, na hora que a gente se encontrou na charrete do homem do leite, que cria suas vaquinhas lá no Triângulo.
Mas nós duas sabemos que a preocupação dela não é com a dor de cabeça. Ela me viu mais uma vez com os olhos úmidos, ontem à noite, quando fiquei sozinha por uns momentos e todo mundo foi dançar. Quando voltou antes dos outros, me olhou e ficou em silêncio, ajudando a despistar com o pessoal da mesa:
- Olha a viúva com cara de tristeza, só porque ficou sem par! É no que dá ficar dando ouvido pra besteira de médico novinho, cheio de modas.
Fabiana, embora more há mais de três anos em Ponte Nova, faz questão de resolver seus problemas de saúde em Viçosa, geralmente com médicos de mais idade, desses consultados por famílias há anos e anos. Eu não, eu consulto aqui na cidade mesmo. E o médico de Ponte Nova diz que eu adquiri uma espécie de alergia a mofo e umidade, o que me leva a espirrar muito e a ficar com os olhos vermelhos. Quando eu contei isso à mesa, todos debocharam do médico e de mim, dizendo que eles não tinham mais o que inventar para tirar dinheiro dos patetas.
- E principalmente das patetas, né gente? - essa piada bobinha de Juca foi o auge do deboche e das risadas na mesa; é um fazendeiro de posses médias, lá de Cajuri, depois de Viçosa, e que tem o estranho dom de fazer as pessoas se sentirem atraídas pela sua constante antipatia, ou rudeza mesmo.
De qualquer forma, Fabiana disfarçou bem o meu choro, com a suposta alergia que eu tinha adquirido.
*
Fabiana é amante de Luisinho Brito. Ela é alta, tanto quanto Milton, mas com a bunda mais cheia, e não com menos curvas, como geralmente acontece com mulheres mais altas. Ela tem o cabelo escorrido e claro, mas o que lhe marca mesmo é a sua voz, meio rouca, masculinizada, e ao mesmo tempo meio fanhosa, numa mistura engraçada, que acaba fazendo que a sua fala se torne ao mesmo tempo simpática, envolvente e dominante. Outro traço é a sua personalidade forte, verdadeiramente explosiva, quando era o caso. Sobre isso, o episódio da casa em Ponte Nova é uma boa amostra de sua personalidade, e um pouco da dele também, embora Luisinho seja o oposto de uma pessoa explosiva.
Alguns meses após iniciado o caso deles, ambos percebendo que a coisa iria longe, ela quis que ele lhe alugasse uma casa em Ponte Nova, não queria ficar em Viçosa, apontada como piranha e amante de homem rico. Ela já tinha tios e parentes outros aqui na cidade, mas nem pensar ficar na casa deles, mesmo os dois dormindo em hotel. Pediu a Luisinho que alugasse o mais rápido possível uma casa para eles. Ele disse que não alugaria. Ela muito se amuou e se magoou, não entendia a recusa, o que ele gastava com presentes, viagens e hotel era muito mais que um aluguel. Ficaram quinze dias sem se falar.
Ele, então, um dia a chamou para passar noite em Ponte Nova. Em um hotel, como sempre, ela pensou. Mas também pensou que talvez ele houvesse mudado de idéia e concordara em alugar a casinha, simples que fosse.
Vieram cedo para Ponte Nova. Ele disse que tinha negócios a resolver lá. Aqui chegando, parou num bar, pediu cerveja e ligou para uma imobiliária, avisando que já tinham chegado. Daí pra frente foi surpresa atrás de surpresa. Mostraram umas quatro ou cinco casas, para Fabiana escolher. Nada de luxuoso ou sofisticado, mas confortáveis, amplas e bem localizadas. Ela estava toda cheia de dengos para com Luisinho, grata pelo aluguel e pelo padrão das casas que escolhera. Escolheu a casa que ficava no Centro, com uma graciosa varanda e ampla vista para o Rio Piranga. Muito além de uma casinha.
Ficaram algum tempo admirando o Piranga a deslizar em meio à manhã. E no que ela escolheu aquela casa, veio a surpresa maior. Luisinho disse que não estava ali para alugar casa e sim para comprar, queria começar a investir no ramo de imóveis em Ponte Nova, e trouxera Fabiana para ajudá-lo a escolher, já que queria começar com apenas uma casa.
Acendeu um cigarro e ficou esperando que ela se manifestasse. Mas Fabiana apenas o olhava, sem nada dizer, e o corretor ali, entre os dois, com um enigmático e divertido, mas discreto sorriso. Fabiana desistiu de entender o porquê de toda aquela palhaçada que Luisinho fizera com ela e disse ao corretor:
- O senhor me leva até a Rodoviária? Eu pago a gasolina ao senhor.
Mesmo vendo que a coisa estava indo longe demais, Luisinho colocou mais lenha na fogueira. Disse que ela era uma ingrata e uma cretina, querendo lhe colocar chifre, bem na sua frente, e logo com seu amigo Silvano. Por acaso ela sabia com quem estava tratando?
- Com Luisinho Brito, pra seu governo, tá, homem dos dinheiros em Viçosa, tá bom?
Fabiana não aguentou mais e liberou sua explosão:
- Sei sim, tô falando com um palhaço, cretino, filho de uma ronca e fuça, que acha que é dono do mundo, que faz o que quiser com os outros... Enfia a bosta do seu dinheiro naquele lugar, seu lixo!
E no que falava, avançava para cima de Luisinho, para lhe acariciar com rasgos de unhas e tapas, Luisinho que, por sua vez, varava a casa, fugira dela na varanda e já estava no quintal, e o corretor Silvano entre os dois, tentando apaziguar, mas tomando umas boas bolsadas lançadas por Fabiana, que atirava para todo lado. Além disso, aquele risinho cínico dele, tudo indicava que estava a par daquela palhaçada
Luisinho finalmente conseguira entrar de novo na casa e trancar a porta. Ela ficou de fora, na varanda da frente, no alpendre; esgotada a fúria, começou a chorar. Luisinho abriu uma das janelas laterais. Comovido com o desamparo de Fabiana, e sabendo que a brincadeira se tornara perigosa, disse-lhe numa voz mansa, mas debochado e brincalhão como sempre:
- Ô moça nervosa, a gente tá se conhecendo hoje, né, mas mesmo assim, pra você ficar mais calma, vamos fazer o seguinte: eu vou pedir para o meu amigo Silvano passar esta casa pro seu nome... Ele vai te orientar nos procedimentos e na documentação... Mais calminha, agora, moça, aliás, como é mesmo o seu nome?
Por dentro, ela era toda alegria e um foguetório de emoções. Mas também ainda tomada pela mágoa de há pouco. Por isso, fez que nem tinha ouvido, sequer tirou as mãos do rosto. Queria deixá-lo inquieto e arrependido o máximo possível, dar-lhe o devido troco. Mas não aguentou muito tempo. Mesmo porque, ela tinha sido bem agressiva com os dois, reagido como uma louca. Riu, ainda com o rosto escondido. Tão cedo Luisinho não aprontaria outra daquela.
Descobriu o rosto, olhou séria para ele:
- Luisinho, se um dia você me aprontar outra assim, você nunca mais vai me ver na sua frente. Anota isso, hein... E abre essa porta logo!
No que acertaram os detalhes com Silvano, os documentos que ela precisaria, e qual dia etc. Depois despediram-no, ela lhe pediu desculpas, mas disse que não se arrependia, os culpados eram os dois; se aquilo tudo algo sério, teria sido uma tremenda sacanagem e crueldade para com ela. Ele entendeu perfeitamente, embora não esperasse que Luisinho levasse a coisa àquele ponto:
- O que a gente não faz pelos amigos, não é madame?
No que Luisinho deu uma de suas gargalhadas de deboche, que não eram tão corrosivas quanto as de Olavo. Difícil saber se ele debochava do fato de Silvano tê-la chamado de madame, ou do fato de Silvano dizer que fizera aquilo por amizade, quando na verdade Luisinho sabia muito que era pelo dinheiro que sua amizade carregava.
*
Por isso eu disse que esse episódio da casa revelara muito de Fabiana e de Luisinho. De Fabiana a explosividade e a fúria, quando a paciência e a doçura chegavam aos limites. De Luisinho, a obsessão pelo deboche e pela brincadeira. Acho que Luisinho, tal como Olavo, debocha do mundo, das pessoas e principalmente de si próprio. Como se necessitasse sempre desmascarar os sentimentos, as dores, as crenças dele e das pessoas em geral. Como se fosse um filósofo sem filosofia. Mas as suas brincadeiras e deboches não eram agressivos ou arrogantes, eram quase camaradas. Por tudo isso se integrava tão bem ao grupo de González. Calma, daqui a pouco vou apresentar Olavo, González, o meu Lázaro e o resto do grupo.
No que Silvano partiu, eles se abraçaram e começaram a pedir desculpas um ao outro, numa rara ocasião em que ele não debochou ou brincou. Ele disse que pelo menos dera para conhecer mais a fundo o lado de fera dela. Ela disse que não faria questão nenhuma de ser dona da casa. Mas que era bem-vinda, isso era.
E tirou a blusa e o sutiã.
Ela disse precisava pensar no futuro. Agora, ela iria trabalhar para fazer seu pé-de-meia, ninguém sabe o dia de amanhã, e se ele a trocasse por outra mais jovem, dentro de alguns anos?
Ele já estava apenas de cuecas.
Aí ele voltou a ser Luisinho e mandou ela à merda, e disse que ela deveria trabalhar como garota de programa, já que tinha tanta necessidade assim.
Ela ficou somente de calcinha, amarelo ouro, combinava um pouco com os cabelos, ela sabia que ele adorava.
Ela respondeu que somente se fosse em Belo Horizonte, o campo em Ponte Nova não parecia tão bom. Ele disse que poderia montar uma baita casa de putaria em Ponte Nova, ela seria a gerente e dividiriam os lucros.
Eles ficaram se esfregando, apenas de calcinha e cueca.
Depois, ele falou sério. Que ela não deveria se preocupar agora, não lhe faltava nada, e que ele se comprometia em montar, em breve, um negócio para eles. Que não lhe daria tudo, apenas sociedade, para ela dar mais valor e não deixar a peteca cair, conhecer o difícil mundo dos negócios. E disse que tinha uma última surpresa para ela, ali e foi puxando-a para o quarto principal . Ela disse: não me venha com sua molecagem de novo, hein? E disse que já sabia o que montaria: uma boutique de alto nível.
Chegando ao quarto, um gritinho tipicamente nosso, feminino: surpresa, deleite e aquela gotinha de frescura que não pode faltar: um belo colchão de casal no quarto, devidamente coberto por um belo lençol e com os travesseiros. E ao lado do colchão bebidas numa caixa de isopor, e numa cesta gostosuras e mais gostosuras, Ele disse que os alimentos quentes ele pediria depois, para não esfriar.
E aí ela percebeu outra coisa: a casa estava completamente limpa e até cheirosa. Já fora feita uma limpeza. Então é que ela entendeu o tamanho da surpresa que ele quisera lhe fazer, todos aqueles detalhes, incluindo-se a tensa brincadeira de há pouco, somente para provocar nela um choque de alegria, de gratidão, de auto-estima. Antes de se deitarem no colchão, não tinha como, ela tinha que chorar um pouco, fora completamente envolvida por ele.
Escondeu o rosto nos ombros dele e chorou baixinho durante uns instantes, dizendo: seu cretino, seu maluco, se faz essas brincadeira e surpresas com uma que tem problemas de coração, ela pode morrer, viu? Ele riu, claro, sabia que Fabiana tinha adorado. Deitaram-se.
E ele foi logo caindo de boca em sua boca e em seus seios e em seu ventre, mas apenas lhe mordiscou e esticou a amarela calcinha amarela com os dentes; retornou para seu rosto. Pretendia prosseguir com sua boca pelas suas costas e pela sua bunda. E, ai, sim, tiraria com os dentes a calcinha e...
Mas ficaram apenas abraçados e se beijando. Pois havia a continuação da conversa. Ele disse que falava de coisas sérias, e não de brinquedinhos tipo boutique. Um laticínio (ele tinha um, em Paula Cândido) uma fábrica de roupas (montara uma para sua filha), uma fábrica de estofados (ele era sócio de uma, em Viçosa) e por aí afora; enfim coisas das quais ele entendia. Ela perguntou se tinha alguma que ele não tinha montado. Ele entendeu a ironia e não perdeu a oportunidade.
Disse que ainda não tinha montado no traseiro dela. Ela disse: e nem vai!
E ela disse que, se pudesse escolher, seria a fábrica de roupas, tinha a ver com ela. Novidade mulher gostar de roupa, ele disse. E arrematou dizendo: fechado.
Mas, para provocá-la, ainda disse que tinha achado que a compra da casa bem valeria uma montada no traseiro. Ela disse: Palhaço! E disse que sabia que ele não teria coragem de fazer algo que ela não curtia. E disse também que isso não fazia o tipo dele. Ao que ele falsamente se ofendeu, dizendo que ela duvidava da macheza dele, que ela não sabia com quem estava falando, que ele era Luisinho Brito e etc e tal. E dava tremenda gargalhada no que dizia essas palavras. Ao que ela suspirou e finalizou: Luisinho machão e ricão, vem pra cá, vem mostrar suas reais qualidades.
E fecharam-se, um dentro do outro, fora do mundo, mas trazendo-o para dentro deles, principalmente a lá fora curiosa e cariciosa manhã, que também parecia estar toda de amarelo ouro.
*
Luisinho Brito é um dos homens fortes da cidade, fazendeiro e dono de vários negócios em Viçosa, posto de gasolina, supermercado e outros; mas, como já deu para ver, não faz o tipo do empresário bitolado, conservador, obcecado em acumular cada vez mais. Vive andando por Viçosa e Ponte Nova, com seu carro último modelo, sempre com litros de uísque no porta-malas; onde quer que pare, convida conhecidos, e muitas vezes gente do povo, para brindar com ele.
Gosta também de andar com Olavo e com González; nunca quis ir para fora do país, diz a Fabiana que não se sente bem no papel de um turista bobo, embora dinheiro não lhe falte. Por isso gosta de conversar com o espanhol, para conhecer um pouco de uma alma estrangeira, para ele González é um homem de verdade, um estrangeiro com fibra, não um daqueles professores chatos e tagarelas, que vêm passar um tempo na cidade a convite da universidade, e que vez por outra vão conhecer sua famosa fazenda de mudas cítricas em Cajuri.
Esses esporádicos passeios também são uma espécie de desafio ou diversão, em relação àqueles que desaprovam sua conduta geral, e em particular seu concubinato com Fabiana; Olavo é debochado e cínico, desbocado e crítico, não apenas com relação às camadas mais altas da sociedade, mas com qualquer um, povo ou não, que ele entenda ser merecedor de seus ácidos comentários.
Então, para Luisinho, é um tapa na cara dos outros carregar a figura desleixada e ressentida de Olavo pelas duas cidades afora, em seu carrão. Além disso, a ligação dos dois vem de longa data, do tempo em que freqüentavam o famoso Muzungu, o puteiro de Viçosa, hoje extinto; e que foi, aliás, gerenciado por Odilon, até há cerca de vinte anos.
Os encontros de Luisinho e Fabiana, por aqui, também ajudaram a fortalecer o hábito dos boêmios de Viçosa vir para cá com mais freqüência. Luisinho é divertido, generoso, mão aberta na hora de pagar despesas, para menos favorecidos como Olavo, Branquinho, e muitos outros.
Branquinho é um veterano da UFV, que toca seu violão e canta vez por outra no Odilon. Tal como Olavo, também já conhecia Odilon, dos tempos do Muzungu. Encanta com sua voz suave e poética, seu jeito e sua figura de rapaz frágil. Já vai para dez anos que está na universidade sem se formar, acho que já passou por um ou dois processos de jubilamento, e conseguiu evitar a expulsão.
Ele é um artista nato, da velha guarda, embora cante várias músicas da MPB; não tem absolutamente nada a ver com o seu curso de Engenharia Florestal, ou qualquer outra formação acadêmica. Poderia e deveria ir para BH, tentar sobreviver de sua vocação, mas é por demais ligado a uma pacata vida de boemia do interior, não tem essas pretensões de sucesso e fama. Até mesmo em Viçosa poderia se encaixar, chegou a tocar no Zé Bóia, apresentando-se em bailes e até mesmo no famoso Braseiro.
Mas não tem força de vontade o suficiente para, ao menos, tentar viver de seus próprios recursos de artista; a sua própria compleição física não ajuda, parece mesmo um garoto, baixinho, franzino. Vai levando a vida, com as despesas feitas pelo pai, proprietário de umas terrinhas em Coimbra, ou Monte Celeste, lá pelos lados da Serra de São Geraldo, Rio Branco, Ubá. Branquinho gasta a maior parte desse dinheiro com cigarro, bebida e jogo de baralho, gosta muito de jogar em Coimbra.
Fabiana me disse que, na verdade, há na vida dele uma mulher que o deixa desnorteado, uma garota simples, por nome Aline, nem universitária, nem boêmia, lá de Coimbra, por quem ele é realmente apaixonado; um desses amores complicados, intensos, cheios de idas e vindas, mas que não parece ser o suficiente para fazer com que Branquinho renuncie à sua poética e boêmia liberdade, e nem renuncie à sua nada poética dependência do pai, que parece cada vez mais cansado da situação.
Enfim, um desses milhares de talentos desperdiçados que zanzam por aí e acabam ignorados, sem a energia suficiente para conseguirem se impor a essa coisa selvagem da tal indústria cultural.
E isso de viver de música no interior ainda está longe de acontecer. Aqui no Odilon, somente nos finais de semana os cantores e os artistas são pagos em dinheiro, nos outros dias têm apenas suas despesas custeadas pelo salão, e uma ou outra gorjeta dadas livremente. Nos fins de semana, é que Odilon lhes repassa o pequeno valor cobrado dos clientes.
Pois o salão do Odilon não é uma típica e sofisticada casa de serestas, como o Braseiro, lá em Viçosa. Foi se consolidando como casa noturna de maneira improvisada, espontânea. Era ponto de encontro das mulheres que trabalhavam no puteiro da Beira-Linha, que foi acabando aos poucos, assim como a maioria dos puteiros, na maioria das cidades.
Para sobreviver aos novos tempos, Odilon foi mudando aos poucos o visual, passou a funcionar como restaurante durante o dia, e começou a promover alguns bailes nos fins de semana. Ganhou um certo ar, não de respeitabilidade, mas ao menos de normalidade comercial.
Mas nem por isso deixou de ser uma espécie de ponto de resistência, não para manter a prostituição tradicional, claro, mas simplesmente para os seus antigos frequentadores relembrarem suas histórias, matarem saudades, conhecidos se reencontrarem. Gente como Luisinho, o espanhol, Olavo, Juca, Branquinho. E não apenas clientes de Ponte Nova e Viçosa, mas das várias cidades da região: Guaraciaba, Teixeiras, Amparo do Serra, Urucânia, Jequeri, até mesmo gente de Mariana e Ouro Preto. Eles passaram a trazer suas namoradas, amantes ou meras amigas para conhecer o local, e com isso o salão acabou atraindo outras pessoas mais liberadas da classe média, pessoas como eu, Fabiana, Jandira, que achavam chique freqüentar uma espécie de local proibido, ainda com ares de afronta social.
Odilon foi melhorando o palco, a aparelhagem de som, a postura dos garçons, mas sem perder o seu charme de espaço informal, popular, nunca se deixou atrair por clientelas mais endinheiradas, ou mais posicionadas socialmente; enfim, continuou como espaço de resistência da boemia, nem antigo apêndice de puteiro, nem casa noturna da moda. Quando comecei a freqüentá-lo, mais ou menos um ano depois de minha chegada em Ponte Nova, essa transição já estava consolidada.
03 - jandira
Antes de falar de minha outra amiga aqui em Ponte Nova, um pouco mais de mim, a memória me exige mais um pouco dessa impotente saudade e tristeza.
A vassoura (a basssora) que com força e desatenção eu então varro o terreiro da sala, e o tanto de desenhos tontos, que eu imagino que a vassoura faz na poeira, são os mesminhos do meu coração de menina crescida mas ainda tonta, mas já querente.
Querente daquele quase desmaio quente, que eu experimentei dois dias antes na casa de sua irmã Vanda, com o corpinho bem colada no quente do seu, e com suas mãos bem agarradinhas nos meus peitinhos por cima da minha blusa de frio. Eu varro e varro o terreiro da sala, pra ver se varro da minha cabeça e do meu corpo esse calor todo no meio desse friozinho d'agora de manhã.
Nossa história começa a ficar séria mesmo é aqui, agora de manhãzinha, logo depois que você chega pra ajudar meu pai na tiração do leite. Meus irmãos foram de novo para a casa do avô, ajudar na plantação de tomate que fizemos a meia com ele.
E você lá do curral me espia. Até se atrapalha de vez em quando na ordenha.
E eu sei. E você sabe. E a gente sabe que hora ou outra deste dia a gente vai. Deslizar para dentro um do outro, e para dentro da vida um do outro. Pra sempre. E a gente ri, ora com a boca do silêncio, ora com a boca dos dentes mesmo, bem disfarçadinhos, e às vezes nem tanto. E então a gente dá um jeito, a gente combina para hoje à noite, lá perto do São Miguel da divisa.
E só de pensar nisso, de a gente poder ficar quase sozinhos de noitinha já dá um calor, uma agonia gostosa. E então não sei... Só sei que...
– Oi, viúva triste. Me fala a verdade: depois daquele churrasco no clube cê viu ele de novo? - assim que atendi ao telefone, Jandira foi direto ao ponto.
– Não, claro que não. O homem tá casado, e bem casado... E tá morando lá naquelas lonjuras do rio São Francisco.
- Ah, é? Tive por lá uma vez, sertão quente, mas bonito... Em que cidade ele tá?
- E em que lugar dessas Minas todas cê já não teve, minha amiga, fugindo por aí... Acho que é num lugarzinho perto da usina de Três Marias. Andrequicé, um nome assim.
- Conheci lá... Engraçado, um nome esquisito assim, e sua cabeça guardou ele facin, facin, né? Tem coisas do coração que a gente nunca esquece, né?
- Cê já tá meio tontinha, né?
- A verdade dói, gente...
- Não dói mais do que a sua, né? E cê sabe que eu não tô falando com vingança ou com maldade, sabe que eu tô falando de coração. Sabe que eu sou capaz de tudo pra te ver livre desse seu tormento. Casa com seu homem, resolve sua vida.
- Não amola, não é hora do mesmo sermão de sempre. Minhas fichas vão acabar, não tenho outras... Cê tem certeza de que não quer que eu e Fabiana vamo praí?
- Quê isso, menina?! Vão se divertir, vão. Amanhã tamo todas juntas – antes de despedir, aproveitei para de novo encostar Jandira na parede - E, olha, se você continuar assim vai ficar sem ficha de telefone e sem ficha de amor também, tá?
Eu sei que Juvenal está para chegar em Ponte Nova, em sua interminável jornada atrás de Jandira. Meu Deus, por quantas cidades esse homem já passou com seu tormento. Se isso não é o verdadeiro amor, eu não sei mais o que é.
Jandira é uma mulher esbelta, de cabelos lisos, boca um pouco carnuda. É uma bonita mulher, que exerce, sem se dar conta, uma sedução sorridente e matreira para cima dos homens. Mas é também uma sedução meio que tristonha, como se estivesse a indagar, de cada homem que dela se aproxima, para dançar ou conversar, qual o caminho que ela deve seguir na vida; como se ela somente deixasse os homens se aproximarem para descobrirem que ela nada quer de concreto com eles, mas apenas para mostrar-lhes seus olhares e sua alma tristonha-interrogativa.
Claro que vez por outra ela fica com alguém, que eu saiba já quis ficar até com o nosso amigo González; porém o espanhol ignorou suas deixas, recusou, tendo em vista que Juvenal já fazia parte do movimento político criado por ele. Mas o seu desejo e o seu afeto, o seu corpo e o seu espírito, estão longe. Às vezes penso que estão com Juvenal, às vezes penso que estão com Jeremias, os dois homens de quem ela se aproxima e foge, sem nem saber por que motivo.
Na verdade, é Juvenal quem vai atrás dela, seguindo-a por essas Minas afora, enquanto ela é quem de vez em quando vai até Jeremias, mas somente para ficar juntos algum tempo, e depois retornar para sua cidade ou ir para outro lugar, à espera de que Juvenal vá bater na sua porta e na sua cama. Tanto o trabalho dela, cabeleireira, quanto o dele, caminhoneiro, permitem essas andanças sem fim; enquanto Jeremias fica quieto no seu canto, com o seu bar, numa periferia de Belo Horizonte.
Tem mais de um ano que ela mora em Ponte Nova. Foi Fabiana quem lhe ajudou a se empregar num salão, próximo a Palmeiras. E Juvenal veio uns quatro meses depois, trabalha como motorista na usina Ana Florência.
De qualquer forma, hoje é mesmo o dia de amigas viúvas, amantes, fugitivas etc falarem por telefone no meio da noite. Como se eu não soubesse que Fabiana iria logo logo contar a minha situação para Jandira, como se Jandira já não tivesse a própria tristeza para lhe perturbar. Jandira e Juvenal. Eu e Milton.
E você atravessa o São Miguel com os pés descalços, dá a volta lá pela estrada de São Miguel, pela ponte pode ser que chamasse a atenção do meu pai, que a essa hora deve estar lá na venda de Totone Luzia.
E então tremo, Milton, tremo, ou então eu, ou então eu... ou então eu estouro este corpo e este coração.
E tem os seus dentes na minha boca, e tem o meu peito durinho e redondinho nas suas mãos. Que é tudo tremulante, que uma tem vontade de morder e de ser mordida, e o outro de ser mordido e de tudo também morder.
Às vezes as histórias se parecem tanto umas com as outras. E não acho que seja só uma questão de mulheres, quer dizer, essas histórias de sofrimentos e desencontros também envolvem muito os homens, ou pelo menos alguns homens. Apenas acho que eles se importam menos do que nós, ou disfarçam melhor do que nós. Acho que daqui a uns dez, vinte anos, acho que por essa época os homens vão poder mostrar mais suas emoções, assumir mais suas fragilidades. Mas, por enquanto, é gente igual Juca e Luisinho quem faz sucesso. Juvenal é um caso à parte, Juvenal não existe, não é deste planeta.
Jandira deve ter ligado de um orelhão próximo do Odilon. Coitada, acho que nunca teve um telefone próprio em casa, também com esse preço absurdo das linhas. Na verdade, nunca teve nem mesmo uma casa pra chamar de sua, desde que saiu da roça, a não ser a casinha lá de São Miguel. Mas aquela não conta, é da família. Tão nova e no meio de tantas perambulações por esse mundo. Minhas andanças e atribulações não chegam nem perto das dela.
Jandira já conhece a minha história com Milton, ou a minha não-história, há já alguns anos. O que ela não sabia, até poucos dias, era que eu tinha me reencontrado com ele, lá no Primeiro de Maio, há algumas semanas, na festa de aniversário do clube.
04 - gonzález, lázaro, olavo, u., ilídio
Foi uma ótima festa de aniversário, aquela do clube. O grande Reinaldo, o craque do Galo, esteve presente; o Primeiro de Maio foi o clube que o revelou no futebol. Esse, aliás, foi o pretexto perfeito para Milton, sob orientação de sua irmã Ritinha, vir a Ponte Nova, e fingir que se encontrou comigo por puro acaso. Milton e Ritinha são atleticanos de coração, e não perderiam a oportunidade de rever amigos e estarem perto do seu ídolo. E, principalmente, se comportarem como adolescentes alucinados, a gritar:
– Rei, Rei, Rei, Reinaldo é nosso rei!
Mas não estou ainda preparada para falar de meu reencontro com Milton, arquitetado por Ritinha. Depois, talvez.
Apesar de cruzeirense, eu não perderia a festa do clube, a presença de Reinaldo, e muito menos a cena dos atleticanos saudosistas, que cada vez mais têm que viver do passado. O povo de Viçosa, principalmente torcedores do Galo, veio em peso - em relação a Luisinho Brito, isso foi no sentido literal, e não apenas simbólico. Pois ele enfiou no carro mais cinco pessoas. Tudo bem que é espaçoso e confortável veículo, mas mesmo assim imagino o aperto deles lá dentro. Se bem que a viagem é rápida, quarenta e poucos quilômetros, além disso, deve ter sido uma verdadeira farra tantos bebedores inveterados amontoados em dois carros, parando aqui e ali para celebrar.
Pois viajaram juntos os dois carros; no de González vieram Branquinho, Murilo, poeta e dono de uma pequena gráfica em Viçosa, Adalberto, um funcionário da farmácia da universidade, bastante conhecido por fornecer comprimidos de aborto para as gravidezes indesejadas, e Jean, que eu não conhecia, membro do MPO e que trabalhava na gráfica de Murilo. Lázaro já estava aqui, em minha casa.
Quanto aos poetas U. e Ilídio, esse último meu primo em primeiro grau, não quiseram vir à festa; não têm aparecido muito. Mesmo porque U. mora em Belo Horizonte, vem a Viçosa e Ponte Nova umas duas ou três vezes por mês. Ilídio ficou em Viçosa, não estava bem do estômago.
São dois poetas e escritores extremamente sensíveis, desajustados e deslocados deste mundo. Há neles um ódio e um desprezo assustadores contra a civilização ocidental, contra tudo o que ela excreta de injusto, empobrecedor e brutal, contra tudo aquilo que o Ocidente promove, para impedir uma vida de plenitude para todos nós, não apenas no aspecto econômico, mas também na vida afetiva, na vida do corpo, na vida da mente e ‘na vida entre as vidas’, na expressão de Ilídio (quem leu Passa-Ouro já percebeu que simplesmente transcrevi o texto de Lázaro neste parágrafo).
O meu amigo-namorado Lázaro tinha tudo para se tornar igual a eles, mesmo porque eles estudaram Filosofia juntos, na Universidade de Juiz de Fora, e ele carrega consigo a mesma sensibilidade e o mesmo ódio contra o Ocidente. Mas tem a personalidade menos instável, menos cheia de altos e baixos, como as de U. e Ilídio.
U. é de São Thomé das Letras, Ilídio é lá da Capivara, filho de meu tio Bartolomeu, ex-patrão de Juvenal e irmão de minha mãe. E Lázaro teve a sorte de nascer na nossa preciosa e inigualável Ouro Preto – foi mais um detalhe a nos aproximar, entre tantos outros; ele a chama carinhosa e orgulhosamente apenas de Ouro.
No dizer de González, Ilídio e U. são uma rica, explosiva e criativa mistura de filósofos, revolucionários libertários e poetas metafísicos. E eu diria também uma mistura perigosa, pois às vezes acho que eles podem não acabar bem, principalmente meu primo Ilídio, o mais atormentado dos dois. Acho que González e Lázaro não veem o perigo da coisa, ainda vou conversar com eles sobre isto.
Mas Ilídio e U. sempre vêm até cá quando há questões sérias a se discutir, em relação ao MPO – Movimento Parar o Ocidente, questões que exigem a presença tanto dos membros de Viçosa quanto dos de Ponte Nova e cidades vizinhas. Esse movimento foi lançado e capitaneado pelo espanhol González, e do qual também faço parte há algum tempo. Sobre isso, talvez fale mais depois.
*
Voltando à festa do Primeiro de Maio, não deve nem ter havido oportunidade para as eternas desavenças entre Olavo e Juca. A rudeza e a arrogância de Juca batem de frente com o deboche e a descrença de Olavo. Pelas costas, Juca se refere a Olavo como pintorzinho de paredes que não se coloca no seu devido lugar, e Olavo diz que Juca é simplesmente um lixo, pior, um lixo matuto e do meio do mato, com quem ele jamais perderia tempo em bater boca.
O caso é que Juca não concebe que Olavo, meio mulato e trabalhador da construção civil, tenha freqüentado a universidade e se formado com destaque. E o fato de Olavo não querer exercer a sua profissão de professor dá ainda mais munição a Juca; Olavo fez Letras, tal como eu.
– Agora taí, né, gente... Com diploma na parede e com uma brocha na mão... Pra que foi tomar lugar dos outros lá na Escola? Ah, vai ver que inventaram uma maneira de pintar parede com um diploma, né... – e a gargalhada que dispara nesses momentos, com Olavo ausente, é simplesmente alucinada e patética.
Da parte de Olavo, antes mesmo de conhecer Juca a fundo e de receber suas indiretas e asperezas, já tinha debochado do fazendeiro. Achava-o tosco, sem graça, sem conversas e histórias interessantes. Parece que a antipatia entre eles foi imediata, um vivo exemplo dos tais pólos iguais que se repelem.
A coisa entre eles só não desanda e descamba para algo realmente sério por causa de Luisinho e de González. Juca e o amante de Fabiana são conhecidos há anos, suas terras fazem divisa, e Juca muito respeita Luisinho quando ele convida Olavo para beberem e falarem mal dos outros. Nessas horas chega a haver quase uma cumplicidade entre os dois desafetos, uma espécie de disputa saudável, para ver quem consegue dizer mais maledicências e segredos acerca dos outros, com Luisinho rindo, intermediando as tolas leviandades de dois marmanjos.
E, quanto a González, embora não consiga achar aquilo correto, Juca admira-se da amizade sincera que o espanhol dedica a Olavo, e da facilidade com que um pintor de paredes consegue conversar coisas profundas, de igual para igual, com um estrangeiro estudado e importante como González; nesse aspecto, Juca encarna bem a mentalidade do brasileiro colonizado, para quem o simples fato de ser estrangeiro de país rico já significa ser alguém superior, respeitado.
Por essas e outras é que Olavo acaba relevando o despeito e a má vontade do outro. Embora não deixe passar barato, já se habituou ao preconceito, pelo fato de ele ter freqüentado a universidade, enquanto vários filhos de famílias mais favorecidas que a dele não conseguiram passar no vestibular, e preconceito não apenas por parte das pessoas mais bem situadas socialmente.
Na realidade, em Viçosa acontecia algo interessante, os chamados nativos que ingressavam nalgum curso superior eram discretamente vistos, não por toda população, claro, mas por muitas pessoas, como se fossem intrusos na universidade, penetras numa festa que deveria ser apenas dos estudantes que vêm de todo o país e até do exterior. Era um pouco parecido com a mentalidade do colonizado, apenas que em lugar de se reverenciar o estrangeiro, neste caso eram os estudantes que, pelo simples fato de virem de longe e com recursos para viverem na cidade, eram vistos como pessoas superiores, respeitáveis, qualificadas etc.
As gatinhas da cidade, então, adoravam namorar, dar e em alguns casos até casar com eles – bom, eu mesma fui uma delas, embora eu não tivesse nem um pouco o perfil de gatinha namoradeira; já os rapazes nativos não me pareciam ter tanto sucesso com as universitárias de fora. Pelo menos as coisas eram assim no meu tempo, mas agora parece que alguma coisa vem mudando, os estudantes já não são vistos com tanta reverência pela população, principalmente por suas festas barulhentas e por suas posturas às vezes presunçosas. Cidades e pessoas vão ganhando novas referências nesses tempos velozes, e então tudo se transforma.
A cidade cresceu muito, para mim ficou horrível, com tantos carros, prédios e pessoas. E, aí, os estudantes passam a ser apenas moradores como os outros. Na verdade, do ponto de vista dos nativos, são moradores que merecem alguma tolerância e deferência, já que a Universidade é a principal fonte de renda da cidade.
Enfim, por tudo isso Olavo faz por ignorar Juca, nas vezes em que se encontram, ora juntos com Luisinho, ora com o espanhol.
*
E, por fim, o espanhol González. É uma figura inesquecível; aliás, me lembra um pouco o cavaleiro da triste figura, o Quixote do seu compatriota Cervantes. Não que ele tenha algo de sonhador, ou delirante. Ao contrário, ele é de uma lucidez profunda e serena, própria de filósofos. Além de filosofia, que estudou num seminário da Espanha, fez também jornalismo, e correu o mundo, fazendo reportagens sobre guerras, fomes, campos de refugiados e outras tragédias sociais. Quando criança, presenciou a dramática Guerra Civil espanhola, inclusive um de seus tios foi morto no conflito, bem na sua frente. Já com mais de sessenta anos, conheceu o Brasil e acabou caindo em Minas, rodou um pouco pelo estado e foi se fixar logo em Viçosa. Coisas do coração. Ele descobriu Viçosa através de amizade com Olavo, numa cidade de São Paulo.
Nem a Olavo ele explica muito de sua vida e de suas andanças.
Lázaro é quem sabe muitas coisas a respeito, conseguiu sem muito esforço que o espanhol se abrisse com ele. Aliás, quem não se abre com Lázaro, sua conversa e sua lábia parecem, não a de um homem ressuscitado, mas a de alguém que nos faz ressuscitar, através da boa conversa, através de nossas próprias palavras. Hei de conseguir os detalhes da vida de González, com Lázaro, no momento certo e no lugar certo, qual seja, na cama nossa de cada noite.
Lázaro andou sumido por um bom tempo, tivemos saudades dele, eu principalmente, claro. Depois de algum tempo passeando pela região, voltou para BH, estava muito preocupado com seu amigo e poeta U., mais especificamente, com a sanidade mental dele, depois de uma noite misteriosa no aniversário de vinte e sete anos de U., e sobre a qual Lázaro não diz muita coisa, mas que o linguarudo Olavo afirma com certeza que se tratou de uma viagem alucinógena, com chá de lírio, de cogumelo, essas coisas.
Na verdade, U., Ilídio e Lázaro já escreveram um livro extremamente poético, uma delirante cascata de palavras, o Dala, sobre aquela noite também delirante, e a obra realmente nos impressionou, até mesmo a Olavo, que é mais chegado a uma literatura realista, crua.
Já ouvi que, para algumas pessoas, podem não ter volta essas viagens da consciência através dessas portas mais ricas e privilegiadas da percepção, quando acessadas pelo chá de lírio ou de cogumelo. Dizem que a viagem é profunda e demorada. E, no caso de U., tomara que não seja irreversível; supondo, claro, que a misteriosa noite de seu aniversário tenha sido realmente regada a cogumelo ou lírio, afinal, não se pode dar muita asa às, às vezes, corrosivas palavras de Olavo.
Mas, voltando ao espanhol, Lázaro dá a entender que a brutal morte de seu Tio Mansueto, ali, bem na sua frente, deixou marcas profundas na alma de González. O que a estupidez e a violência da guerra estraçalharam, e para sempre, não foi apenas aquela admiração e aquele frescor de sentir o mundo, que toda criança é capaz de carregar consigo a todo momento, mas foi a destruição de uma infância poética, profunda, que já tinha olhos transcendentes e mais densos, que a maioria das crianças, para o fluir do mundo e das pessoas.
Sim, deve ter, sim, alguma coisa a ver com a fatalidade da infância, esse ar que ele carrega no rosto, não propriamente uma expressão de tristeza e muito menos de rancor, mas sim uma espécie de ato de contrição, que a gente observa nele sem muito esforço, de vez em quando; não um ato de contrição que ele alimentaria por seus eventuais erros e pecados, mas sim em nome dos erros, pecados e absurdos da humanidade como um todo.
Como se não conseguisse deixar de se sentir um pouco culpado por todo esse turbilhão de alegrias e sofrimentos, de glórias e de massacres dos corpos e das almas, esse turbilhão que se chama história, e que lhe jogou na cara e na alma tantos momentos extremos e dramáticos, em seu trabalho como jornalista na África, na Ásia, na nossa Latinoamérica – aqui no Brasil, ele andou pelo Jequitinhonha, pelo sertão bravo do nordeste, favelas das capitais do sudeste, e por aí afora.
Lázaro e Olavo dizem ter visto fotografias antigas que o espanhol ainda guarda, tanto de sua infância e de sua terra natal, Burgos, no norte da Espanha, quanto de suas viagens mundo afora. Lázaro, inclusive, está se esforçando para terminar uma obra, baseada na noite em que o mendigo Baiano morreu, na tenda em que morava, junto com outro mendigo e uma mendiga, próximo à casa de González.
O espanhol prestou os últimos auxílios a Baiano, acompanhado por Olavo, que na verdade deve ter mais atrapalhado do que ajudado, e seguidos de longe por Lázaro; e, segundo ele, o ato de testemunhar e compartilhar da lenta agonia do mendigo, através da noite e do frio, da escuridão e da tristeza, deixou González bastante abalado naquela noite e nos dias seguintes.
Inclusive, parece que foi a partir daquela noite, na tenda de morte do mendigo Baiano, que González decidiu colocar realmente em prática as iniciativas para a construção do MPO. Foi tamanho o espanto e o envolvimento do espanhol, que isso teria servido como um mecanismo, a disparar de vez o ímpeto rumo ao radical e original movimento que González projetava há tantos anos, desde o fim da União Soviética.
Na realidade, penso que houve, e nisso Lázaro concorda comigo, uma espécie de impulso gradual de González na direção construção do MPO. Esse impulso teria começado assim que ele tomou conhecimento das densas e espetaculares palavras contidas no Dala, fortaleceu-se com os acontecimentos narrados por Lázaro em Passa-Ouro e, finalmente, consolidou-se com o testemunho transcendente que González prestou ao mendigo Baiano, na sua tenda de morte. Lázaro está quase a terminar a sua obra sobre aquela noite, que se chamará Isaía, Irma e Baiano. Mostrou-me uns trechos, e posso dizer que foi realmente uma noite singular. Aliás, ele já me deixou ler integralmente tudo o que já escreveu, com exceção de Passa-Ouro, nesse seu escrito noto, claramente, que faltam algumas páginas. Não entendo o motivo. Qualquer dia lhe pergunto.
Outra observação, que Lázaro me fez, foi a de que também U e Ilídio foram fortemente afetados pelos acontecimentos no descampado, naquela noite fatídica para o mendigo Baiano. A passagem deles pela tenda da morte teria também agido como um mecanismo a provocar profundas alterações, tal como no caso de González.
A diferença seria que, no caso do espanhol, as mudanças foram no sentido de um impulso, de uma fuga para a frente, ao passo que, no caso dos dois poetas, foi uma espécie de retorno, de contraponto do mundo concreto, com suas contradições e dores bem terrenas, em oposição ao mundo transcendente, com sua dores bem metafísicas; enfim, uma espécie de ato de contrição, ou de redenção.
Fiquei feliz em ouvir isso de Lázaro, tranquilizou-me com relação aos demorados mergulhos de meu primo no distante e no estranho, ou no extraordinário. Confio muito na lucidez de Lázaro.
Mesmo porque houve uma espécie de cisma entre ele e os dois, após a conclusão do Dala. Lázaro fora se afastando aos poucos de meu primo e de U., para evitar maiores atritos, pois lhe incomodava aquela postura dos dois poetas, que ele considerava, cada vez mais, como escapista e inócua neste momento de urgência que vivemos no Ocidente, com sua visível decadência.
Ora, se agora o próprio Lázaro os via assim, se via neles essa espécie de ato de contrição, significava que de fato os dois tinham se reencontrado um pouco com o mundo.
Faltou falar do locutor de rádio, Maciel, que também acompanha o grupo, quando eles vêm de Viçosa para Ponte Nova. Ele tem um programa de músicas antigas, que, aliás, é a cara dele. Foi durante um deles que tocou a música de Martinha, que eu ouvi no começo desta história, e que aumentou a minha tristeza.
A visível marca de Maciel é a melancolia. Gosto de conversar com ele, tem uma fala fácil, modesta e, claro, melancólica. Lázaro me contou sobre sua história, o dilacerante caso com Silvana e a sua obsessão com os sinos das duas horas da manhã, tal como González tem sua obsessão com os sinos das quatro da manhã. González contou-lhes um pouco de sua vida na Espanha, pela primeira vez, exatamente na noite da morte do mendigo Baiano.
Os sinos de Maciel dariam uma boa história a Lázaro, forte e... melancólica. E, claro, Lázaro sabe disso. Maciel vem mais pela boemia do Odilon, é a cara dele e de sua melancolia, e pela construção do MPO. É um militante das antigas, chegou a conhecer Lula e toda aquela linda agitação da década de setenta, quando morou em São Paulo; tinha vinte e poucos anos, hoje tem em torno de quarenta e cinco.
Aprendi muito sobre literatura e política com González e seus amigos, ouvindo os diálogos entre Lázaro, González, e os de Ilídio e U., quando estão de bom astral e aparecem no Odilon. E, principalmente, enriqueci a minha vivência da Literatura com eles.
De sua parte, eles gostam de minha conversa e das minhas canções. E até incentivam ou aprovam, silenciosamente, o meu jeito de ser, assim, meio recolhida, meio reservada. Como ainda carrego comigo aquela estranheza da juventude, eles devem ver em mim uma pessoa a ser trabalhada, despertada para a transcendência e a epifania, da qual tanto falam, principalmente González. E até mesmo Olavo contém um pouco do seu deboche quando estou presente.
E Jandira, Fabiana e Luisinho Brito também passam bons tempos na nossa mesa, que tem González como referência.
parte 02
nascentes e epifanias
01 – juliana, nós
Pois é, acabamos nos reencontrando antes do que eu previa. Mas eu não tinha como não falar sobre Juliana, a rival tão ou mais poderosa que a Voz. Na verdade, hoje, a Voz não é mais minha rival, já que ajudo Lázaro a escrever as suas histórias, e ele me ajuda nas minhas; eu e a Voz somos aliadas e não rivais.
Mas Juliana, sim, rival poderosa. Juliana, o nó que Lázaro nos trouxe, bem mais complicado de desatar do que aquele nó que eu trouxe até nós, através de Milton.
Antes de ir para Ipatinga, Lázaro trouxe para a minha casa todos os seus escritos, tanto os que estavam em Ouro Preto quanto os de Viçosa. Foi quando li completamente Passa-Ouro e tomei conhecimento de sua densa estória com Juliana; e, claro, li as passagens eróticas contidas na história. Quem ler a história, que já concluída mas ainda não publicada, saberá do que estou falando e certamente me dará razão.
E também ficou explicado porque ele nunca me mostrava integralmente essa obra, coisa que lá atrás eu já tinha estranhado. E, ainda estranhamente, tinha me pedido que deixasse a revisão dessa obra para o final, depois que já estivesse em Ipatinga.
Foi um choque. Fiquei perplexa, desencantada, sem norte – mas com muito sul, claro, e susto e suor na alma. Depois de tudo o que eu e Lázaro tínhamos conversado e vivido, depois que eu o reerguera de sua paralisia e de seu cansaço, eu imaginava que a nossa ligação seria quase indestrutível, e que nossa vida a dois até mesmo pairava acima do mundo e das pessoas. A leitura do escrito era uma realidade muito contundente para eu poder continuar a conviver em paz com essa certeza, com Lázaro, ou comigo mesma.
E o problema era que aquela ligação com a doce-maliciosa Juliana não tinha acabado. Para além da questão erótica e afetiva, criou-se uma espécie de pacto entre ele e a menina-mulher Juliana. Está tudo lá, no Passa-Ouro; quem ler, e também captar a intensidade e a complexidade da vivência deles, entenderá a razão de minha atribulação.
uma Lolita da Mantiqueira
Resumidamente: Em Itamonte, próximo a Passa-Quatro, Lázaro e Olavo foram apresentados, por González, à família do fazendeiro Altamiro Rezende e Ermelinda, sua esposa e professora primária aposentada. O casal tinha seis filhos, três homens e três mulheres. As três irmãs das Terras Altas, ou As Três Graças, as filhas de Zeus com Eurínome, na mitologia grega, como Lázaro as chama, alternadamente.
Por aí já se vê a admiração de Lázaro pelas filhas do fazendeiro. O que não seria nada de mais, em se tratando de Lázaro. O que surpreendeu e admirou foi ele ter a disposição e o desplante de ter encantado e seduzido, no espaço de uma tarde, todas as três irmãs, e não apenas uma ou duas delas, no caso as de mais idade, Lena e Priscila, de dezoito e vinte e quatro anos. Mas também seduziu e namorou, e bastante, a engraçadinha caçulinha, Juliana, de pouco mais de quinze anos.
Aí é que é a morada do drama, do meu drama. Pois, em toda sua jovem vida, nenhuma outra jovem ou mulher encantou o sedutor e experiente Lázaro, tanto quanto Juliana, Juju ou Ju – no Passa-Ouro é vívido até mesmo o deleite, ou o carinho, que ele sente ao escrever o nome e os diminutivos de sua Lolita da Serra da Mantiqueira. O caso e os momentos eróticos com a doce-atrevida Denise, em Dentópolis, foram fichinha perto do que Lázaro viveu com sua magnética Juliana.
Outro detalhe a ser considerado. As três nada tinham de garotas da roça, tal como eu fui nos meus tempos garota, embora como eu já tenha desnudado, a minha adolescência não foi tão bem comportada, mas muito aquém da ousadia das três irmãs. Também pudera, eram filhas de fazendeiro e de uma professora, e não de dois lavradores como meus pais, donos de um sítio, embora de tamanho razoável a nossa terrinha.
Eu as conheci por ocasião da passagem delas e de seus pais por Viçosa, à época do suicídio e posterior enterro de Augusto, após aquele célebre cortejo fúnebre de Passa-Quatro a Ouro Preto, que Lázaro narra de forma tocante no referido Passa-Ouro. Após Ouro Preto, elas estiveram em Viçosa, na casa de González e de Tio Bartolomeu, e depois de conversas com meu tio, todos decidiram conhecer a Capivara e dormir umas duas noites por lá.
Fiquei um certo tempo com eles em Viçosa e um pouco na casa de meus pais. Eles dormiram na casa de meus avós paternos, embora Ermelinda e Alatamiro tenham feito forte amizade com meus pais, tal como acontecera com Tio Bartolomeu e Tia Cristina.
Mas, esse pouco tempo de convívio, foi o suficiente para estabelecer amizades e descobrir afinidades, principalmente com Lena e Priscila. Quanto a Juliana, eu a vi apenas como a adolescente que era, embora com uma certa singularidade, um certo mistério e faceirice.
Ai de mim, imaginasse eu o que já havia rolado entre ela e o famoso Lázaro (que, reforço, eu ainda não conhecia muito bem) e teria entendido muito bem que a doce Capitu, de nosso Machado, com seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” também seria fichinha perto de Ju-Juju-Juliana – uma das formas com Lázaro se refere a ela. Teria entendido muito bem aquela mistura da cristalina faceirice da menina com a obscura força da mulher.
Engraçado, isso de tê-las conhecido, e especialmente Juliana, antes mesmo de ter contato com Lázaro e de tê-lo deixado entrar em minha vida de forma tão intensa. Mas o que não é intenso com Lázaro?
*
Mas noves fora, nada. Nada eu tinha ver com o envolvimento delas com Lázaro e mesmo com os flertes de U. com Priscila e de Ilídio com Lena, como Marcelina me contou depois. Tornei-me uma amiga distante delas, e me coloquei à disposição para ajudar em alguma coisa, caso Lena e depois Juliana de fato viessem estudar e morar em Viçosa, conforme pretendiam. Priscila já estava se formando em Direito, em Juiz de Fora. Mas tinha vontade de trabalhar em Viçosa, fazer companhia às irmãs e frequentar o grupo de amigos que se reunia em torno de González, detalhe que somente venho a saber agora.
Como também somente agora venho a saber que Lázaro influiu fortemente nessa disposição de Priscila, e depois Lena e Juliana, começarem a se envolver com o grupo e com o MPO – o movimento do qual somente vim a fazer parte depois. Até nisso, elas se anteciparam a mim. Enfim, era todo um conjunto de situações que as atraiu pra Viçosa a Universidade, o MPO, González, amigo antigo, espécie de padrinho delas, e Lázaro, claro. Todas tinham se envolvido e se entregado a ele, embora com Juliana ainda não tenha havido sexo. Lembrando, novamente, que isso aconteceu há mais de um ano e, portanto, não me dizia respeito e, mesmo hoje, não deveria me incomodar.
Ocorre que. De fato, com relação a Priscila e Lena, nada me incomoda. Não as vejo como ameaças, como levianas rivais a mendigarem e correrem atrás de amores e erotismos alheios. Houve o tempo dele e delas, dele com elas, e foi um tempo mágico, vibrante, para Lázaro e para elas.
Nossa, aquela cena de Lázaro e Lena na cachoeira da fazenda delas, em Itamonte, quando ela entrega a ele a sua virgindade, logo na tarde em que se conhecem, e a cena de Lázaro com Priscila, no bambuzal e em meio ao nevoeiro, no alto de Ouro Preto, deixaram-me fascinada. Poesia, força amorosa e libido em estado puro. Ele e Priscila somente se amaram eroticamente depois de uma semana após o primeiro contato na fazenda. Tá tudo no Passa-Ouro. Confesso, masturbei-me.
Mas Juliana, sim, presença que embora distante ameaça-me. Ameaça, medo e perplexidade.
Com Juliana não houve sexo, ao menos até o momento, pelo que González me afiançou. Mesmo porque seus quinze anos, embora Denise, de Dentópolis, tivesse pouco cerca de dezesseis à época de seus tórridos encontros com Lázaro.
Na verdade não é questão de idade. É bem mais complexo e refinado, tanto do lado dele quanto do dela. Juliana faz parte de um movimento católico, que busca, não a preservação da virgindade em si, mas uma espécie de reverência da sexualidade, de espera do tempo erótico próprio de cada uma, ou de cada um. Não à toa ela e minha prima Marcelina se reconheceram e se fizeram logo amigas e confidentes, embora a diferença de idade.
Somente isso já bastaria para me preocupar, pois com certeza Lázaro viu extrema densidade e personalidade nessa postura de Juliana. Atente-se; uma garota morena, de corpo atraente, cheia de faceirice e de doçura, a sedução desabrochando, um certo ar de mistério, enfim, tendo tudo para envolver um homem mais velho, a quem ela admirava profundamente - as três irmãs já conheciam os livros de Lázaro e Olavo, esse foi um dos motivos que Gonzalez os levou até lá, a pedido delas, além de cumprimentar e rever seus amigos Altamiro e Ermelinda e abraçar suas afilhadas.
Ilídio contou-me que Juliana receberá, em um ou dois anos, autorização dos pais dela, para vir morar e se preparar para o vestibular, na Universidade de Viçosa.
As suas irmãs das Terras Altas já estão vindo para Viçosa – Priscila em breve abrirá seu escritório de advocacia, em parceria com um irmão de Jean. Lena fará o próximo vestibular para Pedagogia na UFV, junto com sua inseparável amiga e prima Adriana. E Juliana, como adiantei, ainda não tem a concordância dos pais para estudar e viver em definitivo em Viçosa, preocupados com uma garota de tenra idade, numa cidade tão mal afamada quanto Viçosa, nesses quesitos de hímens e virgens rompidas. Além disso, intuo outra razão –coitados de Altamiro e Ermelinda, perder assim de vez a envolvente companhia de suas três filhas. Então, Juliana vive num constante vaivém entre Itamonte e Viçosa, sempre que lhe permitem.
Eu me senti traída e perdida no meio de tudo aquilo. Jamais esperaria essa atitude de sua parte. Não há como eu dizer aqui da intensidade do meu choque e de minha perplexidade. Como disse, somente quem acompanhou a ligação de Lázaro e Juliana, lá em Passa-Ouro entenderá completamente todo o calvário afetivo e existencial pelo qual passei nas semanas seguintes, depois que tive acesso a todo o seu escrito.
o ciúme excita e desespera helena
O que me queimava o corpo era uma estranha sensação, quando imaginava Juliana, naquele exato momento, possuindo o corpo de Lázaro, e então eu era tomada por uma mistura de ciúme e de desejo, que me humilhava e me excitava, ao mesmo tempo. Pois, como sói (e como dói isso) ocorrer nessas situações, não era apenas o corpo de Lázaro que Juliana possuía, mas principalmente a sua pessoa.
Quer dizer, para ser possuído, primeiro é preciso aceitar essa posse por parte da outra pessoa, depois é preciso agradar, alimentar essa posse ou desejo, tudo isso culminando na submissão da pessoa, e não apenas do seu corpo, à posse, à vontade de quem possui. Claro, é uma via de mão dupla, pois alguém que é possuído também é alguém que possui. E se havia ou não sexo isso não fazia diferença, tamanha a intensidade e diversidade e liberdade erótica entre os dois.
Então, a pessoa traída é jogada num verdadeiro e contraditório turbilhão de emoções e desejos. A mais visível, claro, é a mistura de raiva e desencanto. A perplexidade pela facilidade com a qual o outro exerce a sua liberdade de nos trair, de doar para outra pessoa aquilo que deveria doar apenas a nós; a tristeza com a leviandade com a qual o outro quebra o nosso pacto silencioso-amoroso. Mas, para tornar o turbilhão verdadeiramente contraditório, há ainda a presença do desejo, digamos, por procuração.
Eu confesso que desejava Lázaro através do desejo de Juliana. Mais eu a imaginava com ele – as suas posições preferidas, os seus gemidos, a sua forma de gozar – mais eu me excitava, como se o desejo e o gozo dela fossem genuinamente meus. Mais ainda, como se aquele desejo e gozo por procuração fossem mais genuínos e profundos do que os meus, quando estava com Lázaro.
Isso contribuiu para me deixar ainda mais atormentada. Eu não sabia se isso era uma reação normal, numa situação de disputa amorosa, ou se seria uma espécie de patologia, ou perversão sexual, de minha parte. Nunca me acontecera isso, nem na adolescência, com Milton, nem durante o casamento com Gilberto, nos momentos em que eu tinha quase absoluta certeza de que ele já se envolvia com alguma outra mulher.
*
E o que me queimava a alma era uma tristeza incessante, que às vezes trazia consigo uma angústia ardente.
Passei os dias recolhida, bastante afastada de minhas amigas e do Odilon, a pretexto de estar envolvida com as obras de Lázaro. Mas os passei, principalmente, em andanças sem rumo pela cidade: nas proximidades do rio, nas saídas da cidade, em bairros e ruas que não conhecia. Algumas vezes ia de carro, mas preferia ir a pé ou de ônibus. Parecia que assim eu me sentia menos sufocada.
E nesse meu labirinto de andanças, tudo no mundo se tornava, não digo cheio de tristeza, mas sem graça e meio que hostil; como se fosse o mundo que estivesse morrendo, como se não fosse eu que estivesse a sangrar.
Entristeci-me em definitivo. Fechei-me. Sozinha.
E então foi que chorei. Pela primeira vez desde que soubera.
Precisei me fechar para tudo no mundo, para conseguir chorar. Precisei da pureza de minha dor e de meu abandono. Como se precisasse da pureza da dolorosa nascente que vinha lá de dentro de mim.
E chorei muito, ora discretamente, ora às escâncaras (nossa, nisso de escrever aprendi tanto com Lázaro) quando estava em casa ou isolada das pessoas.
E, o que eu sentia, além da tristeza que derretia, era um imenso, latejante e quase selvagem desprezo para com Lázaro e sua cretina adolescentezinha.
E, numa tarde cinzenta, pesada (tanto quanto eu), já escurecendo, debruçada sobre a balaustrada do Piranga, eu chorava com força, com vontade, sentia-me quase como um rio lacrimejante. Chorei tanto e tão incessante, que parecia que muito de minhas lágrimas caíam diretamente nas águas do Piranga
os sedutores perigos das lágrimas
Mas, naquele espaço de tempo, nos minutos em que discreta me debulhei em lágrimas, em minha delirante imaginação eu ouvi, bem lá nos meus machucados dentros, que o Piranga me dizia que o choro e as lágrimas podem ser enganosos e traiçoeiros. Não fazem sempre bem para quem sofre, como pode parecer. Não entendi, claro, e clarezas lhe pedi, embora ele meio que turvo. Ele me advertiu do adiantado da hora. Ao que retruquei que tempo de sobra e medo nenhum. E lhe disse que não havia muito o que perder na vida.
— Mas, lacrimejante, Helena, é desse perigo que digo...
E soltei a imaginação, e era como se de fato o Piranga me falasse:
— As lágrimas, elas te atraem e depois te traem, com mansidão e voz de proteção... Te buscam, mas te conduzem para cada vez mais fundo... Você se sente tão bem, como que envolta em terno e eterno casulo, como que em revisitado útero materno... Ali, você está em paz, pode chorar e se mostrar à vontade, já que já nada mais lhe resta... Somente você e você e suas lágrimas... E é tão bom estar ali, pois é o único lugar que você acha que pode estar... Aquela mistura de doçura e tristeza, que parece infindável, que parece te chamar cada vez mais para um terno e protetor poço sem fim...
Era tão bom ouvir aquelas imaginárias palavras do Piranga. Parecia González falando:
— E aí, então, o perigo, a armadilha das tão doces lágrimas... Você chora, chora e chora... E se sente reconfortada e se sente renascida... Afinal, religiões e psicologias, e talvez até mesmo filosofias, te ensinaram que aquilo é bálsamo espiritual ou então catarse, desabafo, esvaziamento da mente, da pressão existencial... González e os outros três filósofos do seu grupo, incluindo o seu Lázaro, até mesmo dizem que é uma forma de reverenciar o Mistério, de compartilhar com ele de sua solidão... Então, o seu choro estaria legitimado, sustentado, por forças, conhecimentos e sabedorias tão diversos... Você chora, chora e chora... Mas, balela, perigosas tolices tudo isso... Pois eis que, se você chora em excesso, se você permite que a dor te possua por inteiro, então você percebe, no chamado das lágrimas, um sutil e maligno magnetismo... Sim, que chorar é bom, é vital, é redenção e repouso, como dizem psicólogos, poetas e filósofos...
— Mas o excesso de bem-aventurança, ofertado pelas lágrimas, pode ser violentamente perigoso, traz consigo uma sedução que pode ser mortal... Pois que você pode nunca mais querer sair de lá, daquele constante útero lacrimejante... Claro, por mais demorado seja, você interrompe aquela sessão de lágrimas, por uma razão ou outra, a vida ou alguém te chama, pessoas passam por perto etc... Mas aquilo se gruda em você, aqueles instantes de lacrimejante cascata, como vivido por você há pouco, doce Helena, podem chamar você de volta, e cada vez com mais frequência... E você vai, e você quer, e você vai e você quer, porque você precisa, porque você entende que o mundo e a vida já não lhe oferecem um mundo e uma vida...
— E passam as horas, os dias, as semanas, às vezes até meses, e você se habituou, fez seu habitat daquele útero lacrimejante... Você está sempre chorando, de hora em hora, de dia em dia, de semana em semana, tanto faz a frequência, a regularidade... O fato é que as lágrimas e o choro te ganharam, você entregou a sua vida a elas, você não soube, não quis, ou não teve como se defender, não teve alguém para te defender, para te arrancar de lá, do poço e do útero das lágrimas... Pois, afinal, aquela pessoa que poderia te arrancar de lá é exatamente aquela que serviu de motivo para você comungar em definitivo com o choro, a dor, as lágrimas...
Era tudo tão real que quase pedi a opinião do Piranga, sobre Lázaro me deixar no poço da dor. Mas as imaginárias palavras magnetizavam-me tanto, que eu não ousava interrompê-lo.
— E, então, pronto: Está tudo consumado! O suicídio, ou uma enlouquecida paralisia, é questão de tempo... Sim, você se matará, talvez até mesmo se atirando aqui, no meio de meu leito, assim será menos traumático, para que minhas águas te embalem e te carreguem, mundo afora... Mas carregarei apenas o seu corpo, pois que a sua vida já não estará, não mais estará no mundo, no Ser, estará apenas no Nada...
— É mesmo dessa forma, sofrida Helena, que queres continuar a navegar comigo, apenas como um corpo em decomposição? Tem certeza de que essas suas cascatas de lágrimas são assim tão benignas, se você continuar a habitar nelas, a viver delas e para elas? Helena, doce e perplexa Helena, responde...
E eu respondi, respondi de verdade, com palavras audíveis, embora discretas, se bem que não pessoas próximas:
— Não, não e não! – e no que falei, no que me abri para o mundo, eu então acordei de meu delírio.
helena se levanta, volta à tona
E então eu acordei, eu me ancorei em mim e no rio, eu vi o rio e o rio me viu – o outro, não o imaginário rio que me incutiu palavras tão apavorantes, embora magnéticas para quem sofre até o chão, até a última poeira de sua alma.
O rio me sorriu, permitiu que eu visse novamente a sua incessante e líquida alegria, mesmo numa tarde cinza.
E o rio me reabriu o mundo, me reabriu para o mundo, Como se o Piranga, durante toda a minha atribulação, houvesse me acompanhado, observado e alertado a todos os entes do mundo sobre o meu desamparo, pedindo aos que relevassem, aguardassem, amparassem-me.
Mas o rio advertiu-me: que eu voltasse para ele e para as coisas do mundo, sob o risco de me afogar nos meus revoltos redemoinhos de lágrimas e tristezas.
Fosse lá o que fosse, que fazia brotar aquele falso rio dentro de mim, com sua traiçoeira e algumas vezes fatal sedução (suicídio, a palavra) seria uma traição de minha parte abandonar, ver como hostis e principalmente deixar de cuidar dos entes do mundo, com a devida reverência, tal como eu já aprendera com Lázaro, González e os outros.
E, de fato, algo de bom brotou, ou rebrotou em mim. Lento, mas confiante. O mundo não se me tornou novamente vivo e vibrante de um momento para o outro; mas houve, tanto de sua parte quanto da minha, uma promessa de reencontro, paciente, confiante.
Promessa sustentada e garantida por ele, o rio. Que já tinha me dado tanto, desde meus solitários, mas amenos passeios, a acompanhar as suas águas ao longo das balaustradas do centro de Ponte Nova, até aquela primeira epifania com Lázaro.
E o rio me dizia. E o rio me sugeria - como se fosse um filósofo, tal qual González. Que, se eu me sentia tão assim no estrangeiro, talvez fosse preciso eu retornar novamente às nascentes. Antes de me reencontrar com ele e com os entes do mundo. Antes de prosseguir viagem. Tal como ele, que era sempre foz e mar, e era mas também muitos rios ao mesmo tempo, tinha lá sua milhares de nascentes
Eu precisava voltar às minhas nascentes, às minhas terras. E, claro, ao ribeirão São Miguel, com suas minas nascentes nas terras de meu avô Alfredo Miranda. Que se encontrava com o meu Casca, muitos quilômetros depois que ele, Piranga, e o Rio do Carmo formavam o Doce, para todos juntos prosseguirem na sua incessante e líquida tarefa, até o mar. E o rio parecia que me dizia que um pouco de minhas lágrimas ele carregaria e entregaria ao Casca, como sinal de solidariedade, mas também de advertência do Casca para meu reencontro com o mundo.
O rio me lembrou: o meu Casca, que passava tão lá perto de minha casa. Era o que faltava: inspiração para retornar às minhas nascentes e depois prosseguir na tarefa de existir e testemunhar, com ou sem Lázaro.
Dali saí, então, decidida. Menos decaída. Menos desamparada, a ferida já menos sangrando. Quase um leve sorriso de agradecimento e confiança, ao caminhar calmamente para casa.
*
Embora não soubéssemos quanto tempo Lázaro precisaria permanecer em Ipatinga, ficara acertado que ele viria a Ponte Nova a cada duas, três semanas. Tanto para nos encontrarmos, misturarmos nossas águas e nos mordiscarmos, quanto para ele trocar opiniões e passar informações para González e para nós, acerca de Juvenal e do MPO. Na verdade, depois de tudo saber sobre ele e Juliana, eu nem mesmo duvidava de que aquela súbita partida para Ipatinga fosse mero pretexto para se encontrar com a doce-atrevida Juliana, lá em Itamonte.
De qualquer forma, nada havia a fazer até que ele viesse a Ponte Nova. Foram os dias mais tristes e agoniados de minha vida. Sufocava-me de mágoa e de perplexidade.
*
Relembrava mais e mais os meus ais, quase fatais.
Perambulei como alma penada e suicida pelas ruas de Ponte Nova. Tão forte foi a perplexidade e o medo da perda de Lázaro, que precisei correr de volta para minhas nascentes, refugiar-me nas minhas fontes primevas. Corri para minha família, minha terra, minha gente ancestral, tão intensa era a quase náusea de meu quase total desamparo, no meio do mundo. Juliana e Lázaro eram-me como uma ameaça difusa, indefinida, mas presente, constante.
Aquele trecho, em que narro minhas perplexas perambulanças pela cidade e minhas solitárias conversas com o Piranga, marcou tanto a minha vida – flertei com o suicídio – que até gostaria de repeti-lo aqui, reescrevê-lo para mim mesma, letra por letra, vírgula por vírgula. Assumiria o risco de ser repetitiva. Mesmo porque, aprendi com meu Lázaro dessas liberdades e redundâncias barrocas. Mineiramente barrocas. Ouropretanamente barrocas. A barroca Ouro Preto de meu Lázaro. Mas não faz sentido, pois o texto está bem ali atrás. Mas que dá vontade dá, seria como um alimento e abrigo para mim.
02 – helena navega para suas nascentes
Fui rumo ao que o Piranga me segredara. Fui em busca de minhas nascentes e de meus colos, tão antigos de aconchegos como qualquer outro. Fui para minha terra.
Numa quarta-feira, fui passar alguns na dias em casa de meus pais, na Capivara, e, depois iria para a casa de tio Bartolomeu, em Viçosa. Tanto num lugar como noutro, aprofundei minha ligação com Ilídio, na verdade amigos pela primeira vez em nossas vidas; e me reaproximei de minha prima e afilhada Marcelina. A partir daí, nós consolidamos de fato uma amizade e uma cumplicidade de primos.
Mas somente me encontrei com eles depois, fui direto para a Capivara. Alguns dias depois que cheguei, ainda passei três ou quatro dias meio abatida; quase não saí de casa até a segunda-feira. Na sexta-feira, visitei minhas duas irmãs a pé, pertinho. E com elas não fiz questão de esconder nada, até mesmo para desabafar. Contei as idas e vindas de minha vida com Lázaro, o súbito aparecimento de Milton, a ilusão do reencontro e, enfim, eu e Lázaro nos acertando, misturando nossos rios, como gostávamos de chamar nossa história amorosa, expliquei a elas. E por fim, falei da verdadeira ameaça que a jovem Juliana representava para mim.
Pois não era apenas um casinho. Como se já não bastasse ela ter apenas dezesseis anos, ser bela e sedutora, a relação de Lázaro com ela era algo forte, que ia para além da atração sexual. Era uma espécie de compromisso para cuidar dela. E, por fim, tentei citar de memória alguns trechos das cenas eróticas entre os dois, que Lázaro descrevera em Passa-Ouro. Riram, e acharam fortes e bonitas, sem querer me magoar. Mas o mais angustiante era que, depois de telefonar para Ilídio, ele confirmara que aquilo era real, não eram invencionices literárias de Lázaro, e, pior, Ilídio me informara que Lázaro estava para decidir sua vida de uma vez por todas: ou Juliana ou eu.
Aí é que estava o problema. Pois eu passara, e passava, por duas fontes de angústia. A primeira fora descobrir a presença de Juliana na vida de Lázaro, aquilo que me deixara perplexa, me destroçara; não que eu considerasse como uma traição de Lázaro, já que Juliana aparecera na vida dele primeiro do que eu (engraçado, somente ali na Capivara é que eu vira as coisas assim), mas sim pelas expectativas que Lázaro criara para nós. Essa a primeira fonte de angústia e desolação.
A segunda era exatamente em função daquilo que Ilídio me informara: eu tinha que estar preparada para a escolha de Lázaro, fosse eu ou Juliana. Isso era angustiante e ao mesmo tempo humilhante. Claro que se ele estivesse em Ponte Nova, eu o chamaria para uma conversa imediata e decisiva, não me prestaria a esse papel. Mas tinha que aguardar até o outro sábado. Por isso fora para a minha terra, minha gente, minhas nascentes.
Elas compreenderam perfeitamente e, na sabedoria de sua simplicidade, disseram que, com ou sem Lázaro ao meu lado, parecia que eu precisava fechar um ciclo na minha vida. Um ciclo que começara com minha partida para o Paraná e, depois, com meus anos de Ponte Nova. E começar outro ciclo, no qual eu estaria mais presente na minha terra, minhas nascentes, como eu dizia, mesmo que continuasse morando em Ponte Nova. Ou em Viçosa, se fosse o caso, afinal a maior parte dos meus amigos não se reunia na casa do tal espanhol?
— Nada é para sempre.
E terminaram dizendo que muita gente sentia falta de mim, principalmente Marcelina, que estava um encanto de doçura e simpatia, e que reclamava muito de minhas ausências, nem parecia que eu era sua madrinha. Essas conversas me fizeram muito bem, mas ainda não dissiparam minha tristeza e incerteza.
No sábado, não tive coragem de me recusar a acompanhar o pai numa ida a São Miguel, mesmo porque garantiu que seria coisa rápida; ele entendeu que eu tinha lá meus motivos para não ficar encontrando conhecidos ou parentes. Fiquei quase todo o tempo dentro do carro. O que foi uma pena. Eu tinha tão boas lembranças de nossas idas, aos sábados de manhã, a São Miguel, aquela mistura de dia de semana com feriado, aquele movimento de gentes e comércios que parecia mais festa do que trabalho.
No mais dos dias, eu ficava mesmo era caminhando perto de casa, subindo o pasto, acordando cedo para ajudar na ordenha do leite. E, claro, visitava quase todos os dias o ribeirão São Miguel, o munho, a roda que o girava, com suas pás de madeira tão antiga. Mas não o fazia, em momento algum, por lembrança ou saudade de Milton e daquela tarde em que fiquei nua no remanso do ribeirão. Milton era distância, Milton tinha sido; agora era Lázaro para sempre, apesar de Juliana. Apenas o visitava porque era meu ribeirão, uma de minhas nascentes, a nascente líquida. Mas eu sabia que teria ir até outra nascente – as águas do Rio Casca.
Para mim, era terrivelmente séria aquela conversa silenciosa que eu tivera com o Piranga, naquela tarde de lágrimas e desespero. Fora a aura do Piranga que me tirara da descida, talvez fatal, e me devolvera o mundo, ao mundo, aos entes. Pode parecer meio delirante, para quem assim o quiser, mas, para mim, era terrivelmente verdadeira aquela mensagem que as águas do Casca haviam me enviado, através das águas do Piranga.
Para que eu o visitasse e o visse e o sentisse também como uma de minhas nascentes líquidas, e não apenas as águas do São Miguel, que corriam nos fundos de minha casa, nos fundos de minha alma. Enfim, por aí se vê que Milton passava muito longe de toda essa atmosfera mística, líquida, transcendente. Nem mesmo me excitei com as lembranças de minha líquida nudez naquela tarde.
No domingo comecei a me soltar mais, certamente pelo animado almoço, com as famílias de minhas duas irmãs e meus dois irmãos presentes; eu demorava muito a aparecer depois que comecei minha estrada com Lázaro, merecia-se uma comemoração. Claro que ouvi indiretas e queixas, em relação ao meu afastamento da família, sendo que Ponte Nova era relativamente perto; e, como se não bastasse, meus muitos anos no distante Paraná.
Para combater o bombardeio familiar, garanti a todos que passaria a vir com mais frequência, o que realmente eu pretendia fazer. E também os convidei para me visitarem, lembrando-lhes que, naqueles cerca de três anos que morava em Ponte Nova, somente pai e mãe, e meu irmão mais velho, sem a esposa, tinham me visitado, e isso apenas uma vez.
Eu me espantava com a naturalidade e a sinceridade com que me comprometia em vir mais vezes, e a sinceridade com que os convidava a me visitar. Havia um senso de urgência naquele compromisso e naqueles convites. Como se fosse um pedido de socorro. Ou, de um ponto de vista menos trágico, como se fosse o começo de minha volta às minhas nascentes, tal como sugerida por González, em nosso conversa à beira do Piranga, e também como sugerida pelo próprio Piranga, em nossa conversa silenciosa.
lavar a alma e o corpo no Casca
Enfim, na terça-feira pedi ao pai que me levasse até a beira do Casca. Mas não de carro, e sim de charrete. Como algumas vezes fazíamos, quando criança, mormente em tempos de enchentes e chuvas. Um dos meus escritos, que mostrei a Lázaro, fala da magia de uma dessas viagens de charrete, na enlameada estrada do Cocais.
Agora não eram ainda chuvas, mas quase mesma a magia, embora eu ainda sangrando. Mas o sacolejo do cavalo na estreita estrada, as paisagens vistas ora do alto, ora nas várzeas, as conversas com pai, as revistas pessoas e casas, e, principalmente, aquela sensação de vagar num tempo e num mundo à parte. Tudo isso fazia estancar e mesmo esquecer a ferida, apesar de Juliana.
O pai, por óbvio, observava e tirava suas cismas. Olímpio Rodrigues era o nome do pai, e sua família era lá de Paraguai, distrito de Cajuri, mais para os lados de Coimbra, cidade que o pai de João Branquinho tinha casa, embora passasse a maior do tempo em nas suas terras de Monte Celeste. Sem precisar tocar no nome de Lázaro, meu pai já sabia o que comigo ia. Eu tinha me aberto um pouco com a mãe, mas ainda sem entrar em detalhes, apenas mencionado uma antiga ligação de Lázaro. Mesmo porque, achava que Ilídio já tinha dado com a língua nos dentes, com a sua interpretação, claro.
E finalmente, num trecho mais aberto e plano, o Casca deu as caras de verdade, ou melhor, as águas. Ele e a estrada do Cocais não corriam muito em paralelo, claro, havia aparições e sumiços, pontes e curvas, barrancos e matas, a aproximarem e afastarem rio e estrada.
Era mágico o meu retorno por aquele trecho de minhas raízes. Eu de nada mais precisava, além daquilo: o rio, estrada, o pai, a charrete, as pessoas, pastos e matas; e a manhã, claro, clara. Por falar em pessoas e altos pastos, estávamos bem próximos do sítio do pai de Jandira, Pedro Farias. Talvez fosse lá noutra ocasião, não naquela celebração.
Ao invés disso, pedi a pai que parasse, num lugar o mais perto possível do Casca, para que eu pudesse tocá-lo e bebê-lo. E principalmente senti-lo e reverenciá-lo, pedir-lhe, silenciosamente, que comunicasse ao nosso amigo Piranga que eu ali estava.
O pai escolheu uma ponte, mais ou menos baixa. Ajudou-me a descer até a beira do Casca. Mas, perto da ponte, ele era um pouco encachoeirado e de acesso mais complicado. Por isso andamos um pouco mais para baixo, pai a me proteger, cortando galharias e matos. E ali pudemos ter fácil acesso às suas águas.
E aí o meu ritual. Que na verdade não era nada disso. Mesmo porque eu nem sabia por onde começar.
Bom foi que o pai foi à frente, acocorou-se na beira do Casca, lavou as mãos e o rosto, abundante, prazerosamente. Levantou-se, sentou-se numa pedra próxima e falou um pouco de coisas e casos: o vasto e mareoso presente das enchentes, roças destroçadas, pontes carregadas, a nadação deles meninos, que vinham de longe no tempo do calor, a abundância de peixes no antigamente.
Depois se calou, à minha espera. Mas apenas sentei-me perto dele, eu também à espera de mim mesma, ambos olhando para o Casca.
E aí a saltitante surpresa: eu olhava as águas do Casca exatamente como olhava as do Piranga, em Ponte Nova. Como se quisesse agarrar um pedaço ou porção delas com o olhar; mas à diferença de que, agora, já não mais para acompanhá-las, prendê-las em minha memória ou reter seu destino, e sim para mergulhar nelas o meu olhar, meu cuidado e minha reverência, aceitando em paz a sua líquida e intérmina inconstância, diluindo meu ser-olhar no ser- deslizar delas.
Deixei meu pai e fui enfim até as margens do rio. Acocorei-me tal como ele, naquele gesto típico de mineiros, com as pernas abaixadas e a bunda quase no chão. Mirei e remirei e me deixei enfeixar, enfeitiçar pelo sempre novo brotar das infinitas e líquidas peles do Casca.
E aí foi quando pude sentir de verdade as palavras de González, sobre testemunhar o sempre novo brotar ou jorrar dos entes no mundo, é que pude me dar por pacificada, por testemunha das coisas e testemunha das minhas próprias nascentes, do meu próprio jorrar no mundo, sempre novo e sempre intérmino, e muitas e muitas vezes doloroso.
E somente então pude realizar aquilo que talvez mais se aproximasse ao tal ritual. Levei a mão direita até a margem do rio, enchi-a de águas e as devolvi. Fiz isso por umas quatro ou cinco vezes. Por último, bebi da última leva de água que trazia com as minhas mãos em concha. Mas deixei na boca o suficiente para enchê-la, misturei-as com minha saliva e devolvi suavemente ao Casca. Era como um beijo ao rio, mas era principalmente uma mensagem ao Piranga, para quando se encontrassem lá no Rio Doce, o Casca informasse ao Piranga que a celebração de minhas nascentes e o meu retorno ao mundo já estavam em plano andamento.
Voltei, cumprida, não levada, mas ao menos lavada pelo Casca. Voltei, protegida pelo abraço do pai, os dois mirando o rio e o mundo ainda por instantes.
E, súbito, sem mais nem porque, eu me transformei novamente em puro choro. Era a primeira vez que chorava depois que tinha saído de Ponte Nova. Parecia-me que as lagrimas deslizavam tão rápidas como as águas do Casca. Eu não aguentei a lembrança dos momentos de pura tristeza à beira do Piranga, mesclada agora com a visão do Casca ali à minha frente. Tudo remetia à minha luta para me manter erguida, andante, fonte de fala e de escuta.
Ademais, a presença do pai. O seu abraço como se me dissesse, silenciosamente, para colocar para fora a tristeza que ele sabia que me corroía e que corria pelos meus todos dentros, tristeza que eu vinha disfarçando. Agora, eu sabia que não, que eu não conseguiria esquecer de fato daquilo que me esperava em Ponte Nova. Agora eu sentia que seria tomada, a qualquer momento, por aquela sensação de ameaça indefinida.
O pai deixou que eu chorasse o tempo que eu quisesse, em nada interferindo, em nenhum momento dando conselhos banais e inúteis. Apenas me abraçava. E é claro que me vieram à memória aquelas assustadoras e magnéticas palavras que eu ouvira o Piranga me dizer. Isso, se novamente me entristeceu e assustou, por outro lado me acordou, me fez resistir ao terno e traiçoeiro chamado das lágrimas. Tal como o Piranga me dissera.
Isso, claro, foi me acalmando aos poucos, lavando em definitivo os restos de tristeza lacrimejante que ainda resistiam em mim. E a presença do pai lavava-me, tal como a clara visão das águas do Casca à minha frente.
— É muita coisa pra gente cuidar neste mundo - pausou e suspirou: – É muita gente pra gente cuidar nesta vida...
Assim, do nada – o pai proferiu. O que num átimo praticamente me fechou a ferida, ou me secou a cascata lacrimejante. E, engraçado, das suas palavras me veio uma compreensão maior do drama que nos envolvia – eu, Lázaro e Juliana. Eu quase tudo quis perdoar ali, pois entendi que a ameaça e a dor não vinha deles, vinha da própria vida, que nos coloca frente a situações tão dolorosas e complexas.
Mas não, era mais complicado, não era o caso de perdoar, pois que o perdão de nada resolveria. O que resolvia era colocar fim à minha dor e tristeza, fosse do jeito que tivesse que ser. Estranho, muito estranho todo o nosso viver. Sim, mestre Rosa, além de perigoso, nosso viver é muito estranho – estranho e escorregadio.
No que pai de novo proferiu, a me alegrar, mas sem pieguice ou tolice fácil:
— A gente se engana muito, mas a minha idéia me diz esse seu moço não desgruda mais dessa terra, nem da sua pessoa.
Puro bálsamo, pura alegria, pura música a harmonizar com o deslizar das águas do Casca. Que em verdade tudo pouco durou. Mas ao menos me fez esperanças, me reergueu a alma um pouco mais. No que reergui o corpo, depois de lhe demorado abraço.
Retornamos, subindo o barranco, ele atento ao algum meu perigoso escorregão.
*
Mas aí que um estalo. Não tinha terminado ainda não, o meu ritual naquela minha nascente. Pois que, na descida, não tinha dado para ver, mas ao subir, percebi claramente uma pequena cascata, aonde uma pessoa poderia se banhar tranquilamente.
Imediatamente, disse ao pai que subisse e que esperasse na estrada. E que também vigiasse, pois eu simplesmente decidira tomar um banho ma pequena e bastante escondida cascatinha do Casca. Meu pai, por óbvio estranhou e ficou até um pouco constrangido, afinal, mesmo contra a sua consciência, teve que me imaginar, mesmo que por segundos, toda nuazinha ali debaixo da ponte e no meio das águas e dos matos, e tão próximo da estrada. Já principiava a tentar repelir minha decisão, quando eu apenas lhe dirigi um longo e firme olhar e lhe disse, convincente:
— Pai, se eu não fizer isto a cura vai demorar mais ainda... Às vezes é não basta lavar apenas alma, tem que lavar o corpo também...
Ele entendeu a seriedade da coisa e relaxou. Até fez uma brincadeira, para despistar ou descontrair, dizendo que eu estava querendo voltar aos nossos tempos de criança, quando ele nos trazia para nadar no Casca.
Subiu e foi matutar em cima da charrete. E eu, lépida e atrevida, mais que depressa tirei tudo, camiseta, sutiã, bermuda, calcinha e me esbaldei um bom tempo na friazinha cascatinha. Os olhos fechados, protegendo um pouco os cabelos, sentindo a água cair deslizar sobre mim, sentindo-a desejosa de mim, lavando e acariciando meu corpo, minhas cavidades, minhas curvas, meu sexo, meus secretos, tanto aquelas águas, que eu tocara e salivara há pouco, haviam lavado a minha alma. Tanto quanto Lázaro me inundara e me lavara meses atrás. E, agora, o havia dele dentro de mim dele, talvez fosse aquilo queria lavado em breve, coma ajuda das águas do Casca, certamente.
E, agora sim, eu tinha a mais absoluta certeza de que o Piranga saberia de meu redentor retorno às minhas nascentes. De alma e corpo. Pois certo que as águas do Casca fariam chegar-lhe os meus cheiros e suores e hormônios
Foi belo, foi breve; foi túmido, telúrico e aquático, claro. Quase uma solitária e excitante Epifania. Vortemo.
*
Na volta, a charrete pareceu-me ainda mais aconchegante, a manhã ainda mais borboleteante, até as pessoas, na sua dura labuta, mais remoçadas, mais... renascentes.
O pai cumprimentava a todos, quase todos conhecidos. Agora, que com menos pressa, a tarefa cumprida, parou, uma que outra vez, para discretamente exibir, aos mais conhecidos e que mais se lembravam de mim, a filha agora professora e pensionista do governo.
Parecia que o meu atrevido e mágico banho não apenas lavara-me, mas lavara o mundo e as gentes para os meus olhos e o meu coração. Tudo e todos estavam apaixonantes, aproximantes, amigantes
(Grata, Lázaro, por ter me ensinado e me dado coragem para inventar ou mudar palavras e frases. No fundo, sei que, de um jeito ou de outro, com ou sem epifanias eróticas, entre nós dois também será pra sempre coração no coração, como você disse umas dez mil vezes para a sua Ju-Juju-Juliana, lá no Passa-Ouro; que bom, só por eu pensar em Lázaro, pela primeira vez com gratidão, e não apenas com amargura e desamparo, eu sentia que o pior começava a passar; lavada nas nascentes).
Sentia que a presença do pai enriquecia a magia da minha manhã de mulher renascida. Nunca, desde minha adolescência, ele olhara com receio ou rancor as minhas estranhezas e esquisitices. Ao contrário da mãe e de minhas irmãs e irmãos. Deveria ser o contrário, pois não? Nesses casos, a mãe e as irmãs é que são mais intuitivas, ou compreensivas. Mas não foi o caso, incrível que pareça. Não que não tenham sido amigas, companheiras, confidentes, conselheiras, principalmente com relação à estranha história com Milton e ao casamento com Gilberto.
Mas com o pai sempre fora diferente. Com sua figura alta, magra, seca, embora meio pensativa, vivia disparando ordens, estava em constante atividade. Mas reservava para mim um olhar diferente, mais demorado e com algum cuidado, como se dissesse que estaria sempre por perto de mim, acontecesse o que acontecesse, fizesse o que eu fizesse de meu destino; como se adivinhasse que eu sempre precisaria mais de sua proteção, uma proteção que a mãe nem as irmãs e irmãos saberiam ofertar, por mais que o tentassem.
E, para fechar o passeio de charrete pela manhã, não há como não abrir novamente um espaço para aquele poema de U., que me mostrado por Lázaro, e que mencionei quando de meu reencontro com Milton em BH; embora não houvesse nem uma ponta de saudade dele, apenas a lembrança da magia daquela manhã, na Afonso Pena:
o aberto e dourado abraço da manhã carrega um sorriso anil de felicidade, que se estende quilometricamente. borboletas edificam casas bonitas como crianças. um coração ainda não esquecido das primeiras fomes se alimenta nestas veias feitas de mansidão
E falar em U., lembrei-me também, é claro, de Lázaro. Mas lembrei-me apenas para constatar o quão ele e sua adolescente estavam por demais longe de mim e de meu refúgio na Capivara.
Apesar disso, eu não me iludia, sabia que era apenas refúgio. Que a angustiante realidade da decisão de Lázaro, entre mim e Juliana, me esperava lá em Ponte Nova, em pouco mais de uma semana. Apesar de lavada pelo Casca, de alma e corpo.
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