a bica
corre, sempre a esperar-te
a água da bica
para que você venha
e lave teu rosto criança
tomada a atitude
ela seguirá no fluxo normal
levando para onde você não sabe
teus sonhos da noite dormida
vicente gonçalves de paula - poté, minas
bom dia, cidade
o alto azul aninha o sol
o sol adoça a terra
os ventos beijam os vivos
os vivos convidam seus mortos
estamos pacíficos aqui na barca do atlântico
o sol nos doura desde lá de fora
o olhar apalpamos a pele azul
deste espetacular espelho espacial
que nos protege e limita na órbita
mas há um confronto de tempos
nas ruas
a pressa de nossa peça de cada dia:
perturba o nosso espaço
tropeçamos em nossos passos
automóveis atropelam o nosso pasmo
quereríamos acariciar a cidade das gentes
a que temos fecundado
em meio à noite dos tempos
e que abortamos na manhã de cada dia
roberto soares coelho
(barca vila velha - vitória, agosto 98)
elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
carlos drummond de andrade, 1940
"sentimento do mundo"
que vais fazer, Deus, se eu morrer?
eu sou teu cântaro (e se eu me quebrar?)
eu sou tua água (e se eu me estagnar?)
eu sou teu hábito e sou teu ofício;
sem mim, tu perderias a razão de ser...
depois de mim, não terás casa em que
palavras próximas e tépidas te acolham
vai cair de teus fatigados pés
a sandália macia que sou eu.
teu largo manto deixar-se-á cair.
teu olhar, que com minhas faces eu
aqueço, como se com almofadas,
virá de longe a procurar por mim
- e ao pôr-do-sol se porá
no colo de estranhas rochas.
que vais fazer, Deus? estou preocupado.
rainer maria rilke, "livro de horas"
“De profundis. Deus meu eu vos espero, Deus vinde a mim. Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas e eu continuo a sofrer, afinal o fio sobre a parede escura. Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e Deus por que não existes dentro de mim? Por que me fizeste separada de ti? Deus vinde a mim, eu não sou nada, eu sou menos que o pó e eu te espero todos os dias e todas as noites, ajudai-me, eu só tenho uma vida e essa vida escorre pelos meu dedos e encaminha-se para a morte serenamente e eu nada posso fazer e apenas assisto ao meu esgotamento em cada minuto que passa, sou só no mundo, quem me quer não me conhece, quem me conhece me teme e eu sou pequena e pobre, não saberei que existi daqui a poucos anos, o que me resta para viver é pouco e o que me resta para viver no entanto continuará intocado e inútil, por que não te apiedas de mim? Que não sou nada, dai-me o que preciso. Deus dai-me o que preciso e não sei o que seja, minha desolação é funda como um poço e eu não me engano diante de mim e das pessoas, vinde a mim na desgraça e a desgraça é hoje, a desgraça é sempre, beijo teus pés e o pó dos teus pés, quero me dissolver em lagrimas, das profundezas chamo por vós, vinde em meu auxilio que eu não tenho pecados, das profundezas chamo por vós e nada responde e meu desespero é seco como as areias do deserto e minha perplexidade me sufoca, humilha-me, Deus, esse orgulho de viver me amordaça, eu não sou nada,das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós”.
clarice lispector, 1944, "perto do coração selvagem"
Deus meu eu vos espero
Deus vinde a mim
Deus, brotai no meu peito
eu não sou nada
e a desgraça cai sobre minha cabeça
e eu só sei usar palavras
e as palavras são mentirosas
e eu continuo a sofrer
com o fio enfim sobre a parede escura.
Deus vinde a mim e não tenho alegria
e minha vida é escura como a noite sem estrelas
e Deus por que não existes dentro de mim?
Por que me fizeste separada de ti?
Deus vinde a mim, eu não sou nada
eu sou menos que o pó
e eu te espero todos os dias
e todas as noites
ajudai-me, eu só tenho uma vida
e essa vida escorre pelos meu dedos
e encaminha-se para a morte serenamente
e eu nada posso fazer e apenas assisto
ao meu esgotamento em cada minuto que passa
sou só no mundo
quem me quer não me conhece
quem me conhece me teme
e eu sou pequena e pobre
não saberei que existi daqui a poucos anos
o que me resta para viver é pouco
e o que me resta para viver
no entanto continuará intocado e inútil
por que não te apiedas de mim?
Que não sou nada
dai-me o que preciso
Deus dai-me o que preciso
e não sei o que seja
minha desolação é funda como um poço
e eu não me engano
diante de mim e das pessoas
vinde a mim na desgraça
e a desgraça é hoje, a desgraça é sempre
beijo teus pés e o pó dos teus pés
quero me dissolver em lagrimas
das profundezas chamo por vós
vinde em meu auxilio que eu não tenho pecados
das profundezas chamo por vós e nada responde
e meu desespero é seco como as areias do deserto
e minha perplexidade me sufoca, me humilha
Deus, esse orgulho de viver me amordaça
eu não sou nada
das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós
das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós”