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as falas de González

 

E, a partir daí, González se perdeu e perdeu a si mesmo. Nesse ponto desmontou então de seus grandiosos galopes; desacreditou, debochou – de tudo e de si próprio, até do próprio do Espírito Absoluto.

Pois lhe veio a súbita e implacável percepção de que aquelas grandiosas palavras, e criativas reflexões, não dariam conta do sofrimento e da inutilidade de toda uma vida relegada ao desamparo e à solidão, e à perplexidade com o mundo. Entendeu que nenhuma filósofo ou Filosofia tinha a habilidade para tocar e curar uma ferida tão viva e aberta como a de Baiano. Nem mesmo a filosofia de Hegel poderia servir de consolo ou de justificativa para uma vida tão desperdiçada. A vida de Baiano jamais caberia na carruagem cósmica do Espírito Absoluto.

O MPO, quando construído, e a Revolução Planetária, quando ocorrida, certamente expulsariam do mundo a dor e a tristeza vividas por andarilhos como Baiano.

Mas isso ainda era futuro, não estava ali na noite do descampado. E, ao entender essa impotência do Logos para ficar em paz consigo mesmo, em relação à dor real dos homens, González partiu para o sarcasmo. Como filho do Logos, viu-se no direito e na obrigação de ridicularizar alguns escritores de sua preferência, nas suas buscas obsessivas pela palavra e pela forma perfeita. Como se estivesse ridicularizando a si próprio e ao Logos. Ou como se quisesse punir sarcasticamente a si próprio, em razão de sua impotência perante as feridas de Baiano.

E então criou, de maneira também súbita e implacável, uma divertida, criativa e debochada alegoria, um piquenique com os maiores escritores do Ocidente (faltou um ou outro, claro). Ouçamo-lo, claro que já mais um pouco embriagado e descrente:

- E quanto aos astros brilhantes da palavra literária: Joyce, Beckett, Mann, Guimarães Rosa, Faulkner, Proust, que outra coisa os impeliu, senão seus próprios êxtases com as cintilações e obscuridades da vida, e suas inelutáveis necessidades de nomear esses êxtases e cintilações e obscuridades, recriando-os e registrando-os para a posteridade, e depositando essas oferendas no altar do da Palavra e do Logos?

- Dou aqui uma pequena e alegre contribuição para a nossa longa, gelada e tensa noite– podem usar à vontade, desde que me citem como fonte.

- Imaginemos os escritores acima citados, transformados magicamente em joviais e implacáveis caçadores de borboletas, nas suas alegres e desabaladas correrias pelos campos do mundo e da vida afora. Ouçamos suas exclamações:

Joyce: “Capcaçei uma raribela bloom-amarela!”

Rosa: “Esta solerte criatura tem verdadeiramente um corpo de baile!”

Faulkner: “Aqui está o que lhes trago de sulino santuário!”

Proust: “Oh, enquanto descanso à sombra dessas raparigas em flor, vou caçar dentro do tempo ido!”

Mann: “Meu pequeno Fedro, creia em mim: esta será a Tônio Kroeger da minha vida!”

Todos: “Aproveitemos um pouco mais dessa beligna luz de agosto, e rumemos todos até a montanha mágica e aos campos geraes, atrás das fugitivas dublinenses!”

González:

- Como puderam notar, o desamparado Beckett não está presente para compartilhar da alegria e do delírio coletivos, proporcionados pela sublime e implacável caçada. Mas eis que chega junto deles, ao entardecer, quando nossos intrépidos e irreverentes rapazes (é de se supor que, ao menos quando estão juntos, eles se livram da costumeira depressão e aflição) estão a repousar, relembrando a jornada, dividindo alegremente entre si os preciosos espécimes capcaçadas. O nosso trágico herói já chega com a sua cara de Murphy, lamentando-se:

Beckett: “Vocês não deixaram nenhuma borboleta pra mim! Vocês fizeram de mim um Inominável! Vou me queixar à Voz, vou anular todos vocês quando eu matar Malone e todos os outros, vou narrar a vidamorte deles de maneira tão amarga e dolorosa, que ninguém mais vai querer saber de caçar borboletas nem nunca mais admirar as de vocês! Por culpa de vocês, vou ser obrigado a fazer com que o mundo não queira mais a nossa Companhia!”

González:

- Essas palavras são como uma nuvem negra, no alegre convescote de nossos amigos. Realmente, eles deveriam ter deixado algumas borboletas para o triste Samuel e para os outros que viessem depois! Por um momento eles concordam que não tinham o direito de ir tão longe em suas jornadas. Mas, logo se justificam, afinal a extinção das borboletas raras não era problema deles, o futuro das palavras não lhes dizia respeito, eles tinham apenas obedecido às instruções e exigências da Voz e do Logos, dos quais eram filhos.

- Que o triste Samuel e os outros procurassem, com mais afinco, as borboletas raras, que enfrentassem com a mesma dedicação os obstáculos e as obscuridades, que fossem até os mais altos cimos, as mais distantes estradas, as mais recônditas florestas, as mais fundas cavernas, certamente haveria ainda muitos sítios inexplorados naquele mágico mas exigente reino.

- E, depois, eles já suspeitavam que o estranho Samuel tinha uma certa tendência para a apatia, para o cansaço de viver; ao invés de correr atrás, ele parecia preferir extrair suas borboletas de dentro de si mesmo, ele parecia achar muito cansativo estar verdadeiramente ligado ao mundo e às pessoas. Assim, mesmo lamentando forte a sorte do consorte Beckett, eles astutamente não lhe dirigem ingênuas e inúteis palavras de consolo; ao contrário, entre zombeteiros e indignados, protestam contra o seu projeto de induzir os leitores, do mundo inteiro, a se esquecerem das suas borboletas, tão arduamente cap-encapa-çadas:

Joyce: "Não me faça rioriorir, cetipatético parceiro e conterrâneo: rogo-lhe que não vá, depois de chumbar com o próprio pertiumbar, irriperturbar o despertar de Finnegan, tão aguardentemente rioirrigado"   

Proust: "Senhor Beckett, cada um tem o seu próprio tempo ido a resgatar"

Rosa: "Sô Samuel, viver é mesmo muito perigoso, há muitos rios baldos e também muitas veredas, levando a formosas e brunibrumosas diadorins"

Mann: "Não vá querer que Malone morra logo em Veneza: desespero e solidão sim, plágio e deselegância nunca!"

Faulkner: "Enquanto você agoniza à sombra de selvagens palmeiras do sul, experimente clandestino uísque, enviado por espantado-exaurido Wilbourne e amorável-persistente Charlotte"

González:

- Ao fim dessas irônicas admoestações, o moço Beckett afasta-se deles em silêncio e, como seu personagem Macmann, deita-se ao longo do solo; ajeitando o surrado chapéu, e tendo nas mãos um toco de lápis e um velho caderno, prepara-se para a tempestade que irá se abater sobre ele. Os outros, não tendo mais o que fazer no campo de caça, após despedirem-se do solitário companheiro, de maneira muda e contristada, retomam, redimidos, a estrada de seu anoitecer, combinando antes uma última confraternização, pois eles eram sages de mui bom parecer

Joyce: "Ao Burke, companha, ao Burke!"

Faulkner: "Levá-los-ei para conhecer perfumoso alambique de minha propriedade, no admirável Mississipi!"

Rosa: "Depois iremos até Manuelzão e Andrequicé, logo ali ó: uma branquinha de Minas, uai!"

Mann: "Antes os convido para restaurador e bem comportado chá, em Munique, num prédio de fundos da Rua Reling!"

Proust: "Ah, vamos todos, esqueçamos meus asmáticos achaques"

 

González:

- O nosso Beckett fica então sozinho. Mas não por muito tempo. Eis que passa por ali o filósofo Sartre, um ar meio circunspecto, meio despreocupado, como se estivesse a monologar numa voz modesta-inquiridora, mas, como muitos outros de seus pares, convencido de ter realizado o último grande trabalho necessário à Filosofia, aquela que sempre se acha a filha predileta do Logos, e não sem razão, diria eu:

Sartre: "Criei o Ser e o Nada! Delimitei as suas margens, entre as quais o homem pode e deve navegar, sem risco de naufrágio! Galguei o Muro, devorei a Náusea, encarei a angústia e a devolvi mapeada para os homens! Agora, vou ajudar na Causa do Povo, vou fundar jornais, semear Liberações, incomodar a classe dominante! Vou pra Cuba, fascistas idiotas! Antes, vou passar na tropical Bahia, conhecer a terra de nosso trágico andarilho Baiano, nesta agonia fatal, tão dignamente testemunhada pelos nossos discípulos – meus, de Hegel, de Heidegger e de Marx!"

                                          Isaía, Irma e Baiano

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